O poema épico de Luís de Camões, escrito numa época em que Portugal e a Espanha dividiam o mundo e em que o latim era a língua dos eruditos, constitui não só a exaltação dos feitos dos portugueses com os Descobrimentos, mas também a elevação da língua pátria – o português – ao nível da epopeia marítima.
Publicada 70 anos depois da descoberta do caminho marítimo por Vasco da Gama, a obra, dedicada a D. Sebastião, imortaliza os momentos marcantes da História de Portugal segundo as regras e convenções da epopeia clássica, que Camões enriquece com a sua imensa criatividade, como quando coloca os heróis portugueses em confronto com os deuses, atribuindo-lhes uma condição divina.
Uma característica fundamental do poema é de resto a existência de um herói colectivo – o povo português – que o poeta canta no «peito ilustre lusitano». Dividida em dez cantos, o maior poema épico da língua portuguesa é internacionalmente reconhecido como uma obra prima e está traduzido em várias línguas, do chinês ao russo.
Estou em crer que, mais dia menos dia, alguém tomará a iniciativa de organizar e publicar uma selecção de «pensamentos de Cavaco Silva», à semelhança do que, em tempos, foi feito em relação a esse outro insigne pensador que foi Américo Tomás. E há que dizer que, quem o fizer, tem pano para mangas e êxito de vendas assegurado, tal a quantidade, a profundidade, a hilaridade dos «avisos», «alertas», citações», «pensamentos», produzidos pelo actual Presidente da República – sempre irradiando uma inteligência fulgurante, uma acutilância cirúrgica, uma cultura avassaladora.
E uma coisa, pelo menos, é certa: sempre que Cavaco Silva verte pensamento em público põe o País a gargalhar.
Recordo que, aqui há uns anos, num 10 de Junho – «Dia da Raça», por decisão de Salazar e por opção do actual Presidente da República – um jornalista perguntou ao então primeiro-ministro, se sabia quantos Cantos tinha Os Lusíadas. Cavaco, no seu estilo muito ao jeito de Alípio Abranhos, confessou: «Não me recordo, como a maioria dos portugueses estudei a obra no Ensino Secundário» – mas logo acrescentou, lampeiro: «Agora vou a Os Lusíadas quando preciso de encontrar alguma citação, ou quando a minha mulher me faz algum desafio».
De então para cá, foi um fartote de pensamentos e citações, amiúde entremeadas de luzidas confissões culturais: Li, uma vez, um livro: A Utopia, de Thomas Mann…
Há dias, a conselho da esposa, Maria, citou Nossa Senhora de Fátima e fez da referida Senhora uma propagandista das malfeitorias do pacto das troikas – e, no dia seguinte, presumo que novamente inspirado pela consorte, chamou à liça S. Jorge, por tradição portador de boas notícias, citando-o a abençoar as práticas de austeridade do Governo ao serviço da troika ocupante.
É claro que destas invocações e citações não vem mal de maior ao País: o Presidente cita e a malta ri, ou sorri, ou cora…
O mesmo não direi da mais solene de todas as suas citações: aquela em que ele, de mão no peito, diz: «Juro, pela minha honra, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa». E depois faz o que faz.
Verdes são os campos, De cor de limão: Assim são os olhos Do meu coração.
Campo, que te estendes Com verdura bela; Ovelhas, que nela Vosso pasto tendes, De ervas vos mantendes Que traz o Verão, E eu das lembranças Do meu coração.
Gados que pasceis Com contentamento, Vosso mantimento Não no entendereis; Isso que comeis Não são ervas, não: São graças dos olhos Do meu coração.
Chegou agora a vez de Camões ser acusado de plagiar Obama por, no século XVI, ter escrito um soneto que falava de mudança! Responsáveis pela campanha de 2008 de Obama, que ganhou um importante prémio de publicidade, afirmaram, em conferência de imprensa, que o referido soneto se inspira descaradamente no slogan "Change we Need". Apesar dos esforços dos jornalistas, Camões tem-se mantido incontactável, pelo menos até ao fecho desta edição.
"Excerto do programa "Grandes Portugueses- Luís Vaz de Camões". Leitura de Canto IV de "Os Lusíadas" por Helder Macedo. Montagem - Paulo Milhomens Música - Fernando Lopes-Graça"
25 Já sobre os Idálios montes pende, Onde o filho frecheiro estava então, Ajuntando outros muitos, que pretende Fazer ũa famosa expedição Contra o mundo revelde, por que emende Erros grandes que há dias nele estão, Amando cousas que nos foram dadas, Não pera ser amadas, mas usadas.
26 Via Actéon na caça tão austero, De cego na alegria bruta, insana, Que, por seguir um feio animal fero, Foge da gente e bela forma humana; E por castigo quer, doce e severo, Mostrar-lhe a formosura de Diana. (E guarde-se não seja inda comido Desses cães que agora ama, e consumido).
27 E vê do mundo todo os principais Que nenhum no bem púbrico imagina; Vê neles que não têm amor a mais Que a si sòmente, e a quem Filáucia ensina; Vê que esses que frequentam os reais Paços, por verdadeira e sã doutrina Vendem adulação, que mal consente Mondar-se o novo trigo florecente.
28 Vê que aqueles que devem à pobreza Amor divino, e ao povo caridade, Amam sòmente mandos e riqueza, Simulando justiça e integridade; Da feia tirania e de aspereza Fazem direito e vã severidade; Leis em favor do Rei se estabelecem, As em favor do povo só perecem.
29 Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, Senão o que sòmente mal deseja. Não quer que tanto tempo se releve O castigo que duro e justo seja. Seus ministros ajunta, por que leve Exércitos conformes à peleja Que espera ter co a mal regida gente Que lhe não for agora obediente.
92 Mas a Fama, trombeta de obras tais, Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos De Deuses, Semideuses, Imortais, Indígetes, Heróicos e de Magnos. Por isso, ó vós que as famas estimais, Se quiserdes no mundo ser tamanhos, Despertai já do sono do ócio ignavo, Que o ânimo, de livre, faz escravo.
93 E ponde na cobiça um freio duro, E na ambição também, que indignamente Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente; Porque essas honras vãs, esse ouro puro, Verdadeiro valor não dão à gente: Milhor é merecê-los sem os ter, Que possuí-los sem os merecer.
96 Nas naus estar se deixa, vagaroso, Até ver o que o tempo lhe descobre; Que não se fia já do cobiçoso Regedor, corrompido e pouco nobre. Veja agora o juízo curioso Quanto no rico, assi como no pobre, Pode o vil interesse e sede imiga Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
97 A Polidoro mata o Rei Treício, Só por ficar senhor do grão tesouro; Entra, pelo fortíssimo edifício, Com a filha de Acriso a chuva d' ouro; Pode tanto em Tarpeia avaro vício Que, a troco do metal luzente e louro, Entrega aos inimigos a alta torre, Do qual quási afogada em pago morre.
98 Este rende munidas fortalezas; Faz trédoros e falsos os amigos; Este a mais nobres faz fazer vilezas, E entrega Capitães aos inimigos; Este corrompe virginais purezas, Sem temer de honra ou fama alguns perigos; Este deprava às vezes as ciências, Os juízos cegando e as consciências.
99 Este interpreta mais que sutilmente Os textos; este faz e desfaz leis; Este causa os perjúrios entre a gente E mil vezes tiranos torna os Reis. Até os que só a Deus omnipotente Se dedicam, mil vezes ouvireis Que corrompe este encantador, e ilude; Mas não sem cor, contudo, de virtude!
84 Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse A quem ao bem comum e do seu Rei Antepuser seu próprio interesse, Imigo da divina e humana Lei. Nenhum ambicioso que quisesse Subir a grandes cargos, cantarei, Só por poder com torpes exercícios Usar mais largamente de seus vícios;
85 Nenhum que use de seu poder bastante Pera servir a seu desejo feio, E que, por comprazer ao vulgo errante, Se muda em mais figuras que Proteio. Nem, Camenas, também cuideis que cante Quem, com hábito honesto e grave, veio, Por contentar o Rei, no ofício novo, A despir e roubar o pobre povo!
86 Nem quem acha que é justo e que é direito Guardar-se a lei do Rei severamente, E não acha que é justo e bom respeito Que se pague o suor da servil gente; Nem quem sempre, com pouco experto peito, Razões aprende, e cuida que é prudente, Pera taxar, com mão rapace e escassa, Os trabalhos alheios que não passa.