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O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

Joaquim Gomes (4 de Março de 1917 / 20 de Novembro de 2010): «O primeiro emprego aconteceu depois de completados os seis anos»

O primeiro emprego aconteceu depois de completados os seis anos. Não recordo o tempo que durou o trabalho nesta primeira fábrica de cristalaria, mas lembro-me que era conhecida como Fábrica do Açúcar — não significando o nome, porém, que o trabalho dos aprendizes fosse menos amargo que noutras do ramo. Necessário se torna esclarecer que no respeitante à idade não bati qualquer recorde pois houve crianças, e não foram poucas, que começaram antes dos seis anos, não sendo também raros os casos em que os pais tinham de as levar ao colo quando iam para o trabalho!

As fábricas de cristalaria ou a potes trabalhavam num único turno diário. Os aprendizes, regra geral, entravam numa «obragem» (uma equipa de trabalho) pelo último escalão, que consistia em preparar o molde para que cada peça pudesse ser moldada.

As coisas passavam-se mais ou menos assim. Se o molde era de madeira o aprendiz tinha de o mergulhar numa celha com água após cada moldagem. Se o molde era de ferro mas pequeno, a operação podia ser idêntica. Se o molde era de ferro mas mais pesado, tinha de ser lubrificado, ou levar uma fita de madeira especialmente preparada para o efeito, para que o vidro ainda incandescente se não pegasse ao molde. Os moldes de madeira destinados à moldagem de peças grandes tornavam-se muito pesados, pelo que os miúdos em pouco tempo ficavam bastante cansados. O que na prática também se verificava com os moldes mais pequenos, não pelo peso, mas pelo ritmo de trabalho ser mais acelerado, acontecendo por vezes os oficiais ou outros operários adultos terem mais força no sopro do que os aprendizes nos braços. Em consequência disto, nem sempre durante a moldagem o molde se mantinha bem fechado, do que podia resultar a inutilização da peça e com ela um bofetão ou coisa do género, sem se ter em conta tanto o cansaço como a idade do aprendiz.

A esta distância estaria errado quem pensasse que estas e outras atitudes, algumas bem mais violentas, dos operários vidreiros para com os aprendizes eram devidas à falta de sentimentos humanos e de carinho pelas crianças. Primeiro, porque era a própria engrenagem da exploração capitalista que produzia estas situações, uma vez que ganhando os adultos à peça, cada uma que se inutilizasse acabava por se reflectir negativamente no salário. Segundo, porque mais ou menos em todas as profissões estava generalizada a convicção de que sem se chegar a «roupa ao pelo dos aprendizes», eles se não faziam homens a valer e ainda menos bons profissionais, mas também porque fosse até tradição os pais dos aprendizes recomendarem aos mestres: «Não lhas poupe sempre que as mereçam.» E é claro, isto dava para tudo... De resto, não se pode esquecer que no ensino de então se tinham como indispensáveis as reguadas, ponteiradas e outros mimos do género. Até o senhor prior, quando ensinava a doutrina na casa de Deus, não fugia à regra!

Voltando à minha trajectória como aprendiz de operário vidreiro, recordo perfeitamente que para ingressar na segunda fábrica onde passei a trabalhar teve a minha mãe de me acompanhar e mostrar ao patrão a minha cédula de nascimento para provar que tinha completado os sete anos, idade mínima para nessa fábrica os aprendizes serem admitidos. Tratava-se da Fábrica Marquês de Pombal cujo patrão, o Sr. Magalhães, com alguma razão tinha fama de ser bom. Os esforços desenvolvidos pela minha velhota para que ingressasse nesta fábrica justificavam-se também pelo facto de nela trabalharem já um irmão e uma irmã mais velhos do que eu, o que facilitava imenso o avio do farnel. Este consistia numa fatia de broa com um bocado de toucinho ou, mais frequentemente, com uma sardinha fresca ou salgada, sendo a broa e o conduto cortados em três bocados. Se o conduto era toucinho nunca a divisão levantava grandes problemas, mas tratando-se de sardinha, no dia em que devia calhar a cabeça a um de nós e isso não sucedia, havia discussão, já que todos consideravam essa parte a mais gostosa e a que melhor condutava. De tal modo isto me ficou que, ainda hoje, detesto comer sardinhas em locais onde «pareça mal» chupar as cabeças.

Do trabalho e dos problemas vividos nesta fábrica, o que mais me marcou, além do esforço violento que os aprendizes tinham igualmente de despender, foi um acidente que sofri, o qual podia ter tido consequências muito graves, deixando-me marcas para sempre. Os ganhos, como anteriormente, eram uma miséria. Se a memória me não atraiçoa, trabalhei nela cerca de dois anos. Com o meu irmão fui trabalhar para a Fábrica Nova, Companhia Industrial Portuguesa, que por essa altura ensaiava, creio que pela primeira vez na Marinha Grande, a produção de artigos correntes chamados de «cristalaria em forno a tanque». A decisão que tomámos tinha em vista a subida de categoria e, consequentemente, aumentos de salários. Contudo, o trabalho foi de pouca duração pelo facto de a tentativa de alterar a produção não ter resultado.

In Joaquim Gomes, excerto de Estórias e Emoções de uma vida de luta

Estórias e Emoções de uma vida de luta

-

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

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