Eu proponho isto, a ver: que como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!
(...)
E então o Gouvarinho, que acendera o charuto, espreitara outra vez o relógio, perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do Ministério e da crise.
Foi uma surpresa para ambos, que não tinham lido os jornais... Mas, exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em pleno remanso, com as câmaras fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo de Outono?
O Gouvarinho encolheu os ombros com reserva. Houvera na véspera, à noitinha, uma reunião de ministros; nessa manhã o presidente do Conselho fora ao Paço, fardado, determinado a «largar o Poder»... Não sabia mais. Não conferenciara com os seus amigos, nem mesmo fora ao seu Centro. Como noutras ocasiões de crise, conservara-se retirado, calado, esperando... Ali estivera toda a manhã, com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.
Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriótica.
— Porque enfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...
— Exactamente por isso — acudiu o conde com uma cor viva na face — não desejo pôr-me em evidência... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a minha experiência, a minha palavra, o meu nome são necessários, os meus correligionários sabem onde eu estou, venham pedir-mos...
Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas políticas, começou logo a retrair-se para o fundo da janela, limpando os vidros da luneta, recolhido, já impenetrável, no grande recato neutral que competia à Finlândia. Ega no entanto não saía do seu espanto. Mas porque caía, porque caía assim um governo com maioria nas câmaras, sossego no país, o apoio do exército, a bênção da Igreja, a protecção do Comptoir d’Escompte?
O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pêra, e murmurou esta razão:
— O Ministério estava gasto.
— Como uma vela de sebo? — exclamou Ega, rindo.
O conde hesitou. Como uma vela de sebo não diria... Sebo subentendia obtusidade... Ora neste Ministério sobrava o talento. Incontestavelmente havia lá talentos pujantes...
-Ora neste Ministério sobrava o talento. Incontestavelmente havia lá talentos pujantes...
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— Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao ar. — É extraordinário! Neste abençoado país todos os políticos têm imenso talento. A oposição confessa sempre que os ministros, que ela cobre de injúrias, têm, à parte os disparates que fazem, um talento de primeira ordem! Por outro lado a maioria admite que a oposição, a quem ela constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de robustíssimos talentos! De resto todo o mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta portanto este facto supracómico: um país governado com imenso talento, que é de todos na Europa, segundo o consenso unânime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a ver: que, como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!
O conde sorria com bonomia e superioridade a estes exageros de fantasista. E Carlos, ansioso por ser amável, atalhou, acendendo o charuto no dele:
— Que pasta preferia você, Gouvarinho, se os seus amigos subissem? A dos Estrangeiros, está claro...
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O ministro tossiu, balbuciou:
— Certainement... C’est très grave... C’est excessivement grave...
Ega então afirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interesse geográfico pela África, faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado...
Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.
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(...) um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado...
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— Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram- se já os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente noção da moral cristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros... Enfim, o melhor está feito. Em todo o caso há ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Luanda precisava-se bem um teatro normal, como elemento civilizador!
(...)
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Todo Eça em O CASTENDO:
adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge
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