O que faz falta é informar a malta
Desde há mais de 160 anos, ininterruptamente, dia após dia, políticos, analistas, comentadores e outros que tais, vêm repetindo a mesma lenga-lenga. A luta de classes acabou dizem. Outros vão mais longe e sentenciam que pura e simplesmente nunca existiu. Qual cassete estragada proclamam que o marxismo e/ou o marxismo-leninismo está morto e enterrado. Qual velho disco de vinil riscado, afirmam que o capitalismo é o «fim da história».
E, no entanto, o que nos mostra a realidade, essa «chata»? Essa realidade que é sempre mil vezes, um milhão de vezes, mais rica e criadora que o melhor dos sonhos, ou o mais criativo dos projectos?
Mostra-nos que na relação de exploração que se estabeleceu entre burguesia e proletariado, entre classes dominantes e classes dominadas, há uma constante disputa. Disputa que irrompe a cada momento pela nossa actualidade. Tenhamos ou não consciência dela. Nem o facto de estes últimos anos serem de ascenso, imposição e reinstalação hegemónica de uma ordem capitalista altera esta realidade.
Esta dinâmica de luta conhece muitos sucessos e retrocessos. Com diferentes correlações de força entre capital e trabalho. Numa constante relação dialéctica.
A burguesia criou e desenvolveu o salário, o despedimento, a jornada de trabalho, o seu Estado. Os trabalhadores responderam concebendo e desenvolvendo a greve, os contratos de trabalho, o horário de trabalho e as horas extraordinárias, o Estado socialista.
Os trabalhadores criaram e desenvolveram os sindicatos de classe, a unidade e a solidariedade, o materialismo dialéctico e histórico, os partidos de classe, os partidos comunistas. A burguesia logo respondeu concebendo e desenvolvendo os sindicatos divisionistas, o individualismo do salve-se quem poder, as concepções idealistas e mesmo religiosas da realidade, a proibição, perseguição e esmagamento dos partidos comunistas e revolucionários.
Hoje, como ontem, ou amanhã, os objectivos das classes dominantes são cristalinos: perpetuarem-se no poder, continuando a agravar a exploração da força de trabalho, aumentando a mais-valia extraída do trabalho.
O capitalismo mantém as suas características essenciais, como sistema de exploração, opressão e agressão, marcado por injustiças, desigualdades e flagelos sociais. Um sistema onde há classes que constituem uma minoria da população que concentra em si a riqueza e a usufrui em excesso e classes que constituem a maioria esmagadora da população que vive com graves carências e que, em vastíssimos sectores, vive numa zona social sombria de pobreza e miséria. Os resultados aí estão: exploração, fome, doenças, miséria, guerras e morte para milhares de milhões de seres humanos. As 280 maiores fortunas do planeta concentram em si mais riqueza que 2 mil milhões de pessoas.
Estado dos trabalhadores
A necessidade de um estado dos trabalhadores, de um estado socialista, nasce das contradições do sistema capitalista. O capitalismo criou as premissas materiais necessárias para a passagem da humanidade a um sistema sócio-económico superior.
A necessidade da transição para socialismo é gerada pelo próprio capitalismo, onde os produtos do trabalho organizado socialmente constituem a propriedade privada capitalista. Isto apesar da socialização a uma escala sem precedentes do trabalho e da produção.
Esta contradição é a matriz de todos os fenómenos de crise das sociedades capitalistas contemporâneas.
A Revolução russa de Outubro 1917 e a criação da URSS foram acontecimentos de dimensão histórica. O século XX ficará marcado na história precisamente por esse empreendimento gigantesco de transformação social que foi a concretização da sociedade socialista.
A Revolução de Outubro foi a primeira revolução socialista vitoriosa. Pela primeira vez a classe operária e seus aliados conquistaram o poder. Criaram um estado dos operários e camponeses. Reestruturaram a sociedade no interesse dos trabalhadores e da esmagadora maioria do povo.
Trata-se de uma realização pioneira, sem precedente histórico. Pela primeira vez em milénios de sociedade humana, o sonho, a utopia, a aspiração tornavam-se projecto político e empreendimento concreto de edificação de uma sociedade nova, sem classes sociais antagónicas, livre da exploração do homem pelo homem.
A Revolução de Outubro, correspondendo às exigências do desenvolvimento social, inaugurou uma nova época histórica – a época da passagem do capitalismo ao socialismo.
Desde 1917 o capitalismo internacional foi obrigado a ter em consideração a existência duma força agindo como contrapeso e que iria ser o elemento mais determinante na escolha da sua linha de actuação.
Graças à Revolução Socialista de Outubro surgiram as condições para fixar direitos, algo que o mundo do trabalho jamais tinha visto antes, mesmo nos países capitalistas mais desenvolvidos.
As conquistas dos trabalhadores e dos camponeses sob o poder soviético tiveram igualmente efeitos positivos para o mundo do trabalho dos países capitalistas. Foram um factor fundamental para obrigar os partidos no poder, fossem eles conservadores, liberais ou social-democratas a fazerem concessões à classe operária.
A União Soviética foi o primeiro país do mundo a instaurar a jornada de trabalho de 8 horas (a partir de 1956 foram implementados os dias de trabalho de 7 horas e de 6 horas, bem como a semana de 5 dias). O primeiro a assegurar o direito do homem a um trabalho permanente e fixo. O primeiro a liquidar o desemprego (1930) e a assegurar o pleno emprego. O primeiro a estabelecer um ensino gratuito. O primeiro a fornecer cuidados de saúde gratuitos e a assistência social. O primeiro país do mundo a construir uma habitação de baixo preço e a garantir os direitos políticos e sociais fundamentais para a maioria da população.
Períodos de lazer eram assegurados a todos os trabalhadores. O seu conteúdo variava também em função das infra estruturas criadas pelo poder soviético: casas de repouso, instalações hoteleiras ou de campismo. Uma vasta rede de teatros e de cinemas, de associações artísticas e desportivas, de conjuntos musicais e de livrarias cobria toda a União Soviética. Até nas mais pequenas aldeias e mesmo nos cantos mais longínquos da Sibéria. Cujas vastas extensões foram exploradas e literalmente transformadas graças ao trabalho heróico de milhares de trabalhadores, entre os quais numerosos voluntários.
A segurança social foi uma preocupação prioritária para o Estado Soviético. A reforma era universal e foi fixada aos 55 anos para as mulheres e aos 60 para os homens. Os fundos da segurança social eram financiados pelo Orçamento de Estado e pelas contribuições provenientes das empresas. Existiu igualmente uma preocupação semelhante nos outros países socialistas da Europa. Os trabalhadores nunca conheceram a insegurança, os problemas e as angústias que sofrem os trabalhadores, os jovens e as camadas laboriosas dos países capitalistas.
O poder soviético construiu os alicerces para a abolição da discriminação e da opressão das mulheres. Concedeu-lhes plenos direitos legais. Protegeu a maternidade como um dever social e não como um dever privado ou familiar. Aliviou as mulheres de numerosas responsabilidades nas tarefas familiares ao criar um sistema gratuito de benefícios sociais gerido pelo Estado. Desde os primeiros momentos da sua criação ocupou-se dos preconceitos velhos de vários séculos, bem como de toda a espécie de dificuldades objectivas enormes. Dedicou um interesse particular aos casais jovens. Se bem que isto não signifique que todas as formas de desigualdade entre o homem e a mulher tenham sido eliminadas, é um facto que o poder soviético ajudou as mulheres a sair do seu estatuto de esquecidas, de seres humanos de segunda.
O esforço para elevar o nível de instrução pública em todos os níveis foi um componente constante e integral da política soviética. Mais de três quartos dos trabalhadores da URSS tinham uma educação de nível universitário ou de nível secundário completo e, ao mesmo tempo, o analfabetismo, que em 1917 atingia 73% da população, foi rapidamente erradicado.
Os resultados expressaram-se através do desabrochar das ciências, do primeiro voo espacial por Youri Gagarine. Expressaram-se pelo aparecimento de cientistas de renome mundial em domínios tão diversos como a física, as matemáticas, a química, a medicina, a engenharia, a psicologia e outros, criando assim um imenso reservatório de conhecimentos científicos.
A construção da base económica socialista e a formação de um estado dos trabalhadores tornaram-se o fundamento e o instrumento a partir dos quais se ia moldar o homem novo, o criador da cultura socialista. A sua influência foi universal e abrangeu todos os povos e nações desse vasto país. As realizações da cultura socialista em todos os domínios tornaram-se propriedade das grandes massas do povo enquanto que benefício social do Estado.
O Estado fornecia os recursos para a educação artística desde a infância, a fim de ajudar ao desenvolvimento da criatividade artística. Na União Soviética, não foram só os grandes artistas que se distinguiram em todos os domínios da estética, mas antes de mais o alto nível cultural das massas populares em geral.
A mesma atenção foi dada para proteger e difundir pela humanidade as melhores realizações intelectuais jamais conhecidas. Ao mesmo tempo que nasciam as obras de arte socialistas e a cultura socialista em geral, milhões de cidadãos soviéticos estiveram em condições de estudar e assimilar as grandes obras da cultura humana. Depois do Louvre e do Vaticano, o museu do Ermitage possuía a melhor colecção de obras de arte do mundo e ela era acessível a todos. O povo soviético não tardou a ter um sólido conhecimento das criações culturais. E isto desde os primeiríssimos momentos da revolução de Outubro e durante a guerra civil, numa época em que as pessoas tinham fome, frio e morriam frequentemente de cólera ou nos campos de batalha.
Os progressos realizados pelos povos da União Soviética e dos outros países socialistas provam a superioridade do modo de produção socialista em relação ao capitalista. Eles adquirem um valor ainda maior, se tivermos em consideração quer a herança da assimetria capitalista, quer as destruições provocadas por duas invasões estrangeiras - 1918-1921 (9 milhões de mortos) e 1941-1945 (27 milhões de mortos), quer ainda o atraso à época da revolução em comparação com os Estados Unidos, mas também com a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha e o Japão.
A Revolução de Outubro de 1917 transformou a atrasada Rússia semi-feudal na segunda potência económica do mundo num tempo historicamente curto. Em praticamente todos os países onde se verificaram revoluções socialistas foi impressionante o desenvolvimento das forças produtivas nomeadamente na indústria e agricultura.
As evoluções negativas verificadas, fruto de erros internos e da acção externa do capital e do imperialismo, que se traduziram nos reveses contra-revolucionários dos anos 1989-1991 não contradizem estes factos.
A actuação do capital
Foi a força desta realidade que tornou possíveis importantes conquistas por parte da classe operária, dos camponeses e demais trabalhadores em muitos países capitalistas desenvolvidos. Questões hoje dadas como adquiridas por todos nós, só o foram, e são, porque existiam países que tentavam edificar uma nova sociedade. E porque havia, e há, quem em todo o mundo lute por essa causa.
Direito de voto para todos (um homem, um voto). Ensino e saúde gratuitos. Igualdade da mulher e do homem (na democrática Suíça só nos anos 80 do século XX...). Contratação colectiva, horário de trabalho e horas extraordinárias remuneradas. Salário igual para trabalho igual. Libertação e independência dos povos do chamado Terceiro Mundo oprimidos pelas potências coloniais. Direito à greve e à manifestação. Liberdade política e sindical. Fim da discriminação por questões de raça (nos EUA só em 1964...). Férias pagas. Segurança Social. Etc., etc., etc.
A força do exemplo funcionava. A luta mundial entre os sistemas capitalista e socialista actuou como um factor de restrição sobre a classe dominante, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Em particular no modo de tratamento dos trabalhadores e dos oprimidos. Durante esses 70 anos pode-se afirmar que a URSS e os países socialistas estabeleceram os padrões mundiais quanto aos direitos da classe trabalhadora. Códigos de Trabalho, aumento da idade da reforma, precariedade nas relações laborais, destruição dos serviços públicos, nomeadamente de saúde e de ensino, só começaram a surgir de forma ampla e generalizada com o desaparecimento dos estados dos trabalhadores no leste da Europa.
Segundo Marx, a quantidade dos meios de subsistência necessários aos trabalhadores foi determinada historicamente em cada país. Isso dependeu do grau de necessidades (conforto) ao qual a classe operária, e a sociedade em geral, estavam habituadas, segundo o grau de desenvolvimento económico do país e do desenrolar da luta de classes. Em cada caso os patrões pagavam mais, ou menos, segundo as condições particulares de cada país.
O nível dos salários da classe operária, nos países capitalistas mais desenvolvidos, sob a pressão exercida pela concorrência mundial estabelecida pelos grandes monopólios, é cada vez mais influenciado pelo nível salarial dos países onde eles são mais baixos.
Os salários permanecem estagnados, mas a jornada de trabalho torna-se mais intensa. O trabalho da fábrica é organizado para não haver nenhuma ruptura na produção real. Do ponto de vista dos patrões, um trabalhador com direito aos serviços de saúde, a uma pensão, férias e a um salário decente, é demasiado caro em relação ao mercado mundial do trabalho. De um ponto de vista marxista, o patrão considera que o salário pago ao trabalhador é superior ao valor da força de trabalho socialmente necessário.
Após o desaparecimento da URSS, a classe capitalista não se sentiu mais obrigada a limitar a exploração capitalista e a repressão. Os capitalistas consideram que não têm que se preocupar mais com a possibilidade da sua própria classe trabalhadora se voltar contra o capitalismo, como sistema. E que essa luta seja inspirada pela existência de países socialistas. O desaparecimento da URSS retirou toda a pressão sobre os patrões de terem que encontrar qualquer padrão de segurança no trabalho, salários decentes, férias, tratamento de saúde, pensões, etc.
A todo este processo de liquidação de direitos laborais, à liberdade de fazer do trabalhador um indivíduo escravo dos ditames do lucro, o capital dá-lhe o nome de flexibilidade. Ao indivíduo reduzido a si mesmo, o indivíduo trabalhador disponível a toda a hora e a todo o momento para executar as tarefas produtivas definidas o capital chama de liberdade.
Em tempos de acção e luta, em tempos do XVIII Congresso há que «informar a malta», parafraseando a canção de Zeca Afonso. A luta pelo socialismo também passa pela necessidade de desmontar as teses congeladoras da história que a classe dominante procura inculcar nas massas.
Há que desmascarar que as propostas ideológicas do chamado neo-liberalismo não são nem modernas, nem high-tech. Pelo contrário são um ideário do século XIX, quando quase não havia direitos sociais para os operários e trabalhadores.
A divulgação, estudo e análise da memória histórica das tentativas de construção do socialismo na URSS e nos outros países socialistas da Europa não nos deve envergonhar. Aprendendo com os seus sucessos e com os seus erros e desaires estaremos certamente em melhores condições para prosseguir a luta rumo a uma sociedade sem exploradores e sem explorados.
In jornal «Avante!» - Edição de 29 de Maio de 2008