As FARC são modernas e têm um órgão oficioso
Transportando a polémica daqui para aqui. Algumas notas telegráficas:
1. A violência na sociedade colombiana tem sido endémica. Vem desde a independência da Colômbia. Não estou sequer a fazer juízos de valor. É um facto.
2. Desde 1853 a 1902 o país esteve mergulhado em guerra civil quase permanente. Entre 1899 e 1902 deu-se a chamada guerra dos mil dias entre facções lideradas pelos partidos conservador e liberal. Resultado: entre 150 mil a 200 mil mortos (varia consoante as fontes), numa população que não chegava aos 5 milhões. Ainda não existiam nem comunistas, nem guerrilhas…
3. Em 1932 começa a guerra com o Peru. Entre 1930 e 1946 sucedem-se governos revanchistas de liberais contra conservadores e vice-versa. As mortes aos milhares continuam.
4. De 1948 a 1953 o período da história deste país conhecido como «La Violência». A sua origem vem de longe, como se vê. Mas a causa mais imediata está no «Bogotazo». Mais de 200 mil mortos é o saldo. Mais uma vez nem comunistas, nem guerrilhas marxistas têm o que quer que seja a ver com esta questão.
5. Mantém-se o sistema bipartidário entre liberais e conservadores. Consequência: nos anos 50 criam-se as primeiras guerrilhas populares (originárias nomeadamente de elementos do partido liberal) como forma de protecção das populações. Em 1964 as FARC assumem um carácter marxista.
6. Pode encontrar dados e análises sobre esta realidade no livro de 1968, editado no Brasil (creio que foi o 1º livro a ser apreendido pela ditadura brasileira de então), da autoria de Miguel Urbano Rodrigues «Opções da Revolução da América Latina». Ou, tirando os considerandos ideológicos, na Wikipedia versão em castelhano.
7. As primeiras guerrilhas na Colômbia surgiram em 1950 e até Setembro de 2001 NUNCA foram consideradas «terroristas». É um facto. George Bush desencadeou em 2001 a sua guerra contra o terrorismo e Álvaro Uribe pediu que as guerrilhas colombianas fossem reclassificadas como «terroristas». E Bush acedeu.
8. Em 1985 formou-se a “União Patriótica” (UP), movimento político amplo e democrático ao qual pertenciam também as FARC (na altura num processo de cessação de hostilidades e de pacificação). Na UP participavam igualmente diferentes grupos políticos de esquerda, nomeadamente o PCC. Contra a UP foi desencadeada una operação de extermínio por parte de grupos narcotraficantes, militares e paramilitares de direita e extrema-direita. Só para o PCC isto representou um saldo de cerca de 3.000 militantes assassinados. Para as forças democráticas da Colômbia significou candidatos presidenciais, senadores, deputados, presidentes de câmaras, autarcas, sindicalistas, dirigentes associativos assassinados aos milhares. De forma selectiva nuns casos. Indiscriminadamente noutros. Isto é legítimo da parte de um governo eleito?
9. A Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos (CIDH) exigiu junto do governo colombiano “medidas cautelares de protecção para os dirigentes e sobreviventes da União Patriótica e do Partido Comunista Colombiano”. Acresce que a referida Comissão aceitou a queixa instaurada contra o Estado colombiano pelo genocídio político de que foram alvos a UP e o PCC.
10. A CIDH admitiu o caso em Março de 1997, e no Informe n.º 5 do dia 12 desse mesmo mês reconheceu que as provas apuradas pela queixa “tendem a caracterizar uma conduta de perseguição política contra a União Patriótica cujo objectivo era exterminar o grupo, e a tolerância dessa prática por parte do Estado na Colômbia”.
11. A Corte Constitucional, órgão máximo da justiça colombiana, assinalou, na sentença n.º T-959/06, que “essa classe de propaganda desconhece que a União Patriótica foi um movimento político, que participou em actos eleitorais e que teve presença em distintos órgãos representativos. O ocultamento desta realidade tem como consequência a promoção de uma imagem negativa do movimento e dos seus membros, pois em lugar destes serem considerados legítimos actores políticos, são apresentados como responsáveis de delitos perpetrados contra civis”.
12. Agora vamos ao meu artigo do Público de 11/07.
13. De acordo com a legislação colombiana os PR só podem ser eleitos uma vez. Em 2006 a lei foi alterada por proposta de Álvaro Uribe. O Supremo Tribunal contesta a legalidade de sua reeleição em 2006, obtida mediante a compra de votos confirmado pela confissão da ex-parlamentar Ydis Medina (num processo semelhante ao de Collor de Mello no Brasil). É um facto.
14. Sessenta parlamentares da sua base de apoio estão incriminados num escândalo de corrupção, ligações com o narcotráfico e os paramilitares. Tem um primo e conselheiro político, Mário Uribe, preso pelos mesmos motivos. É um facto.
15. Mais de 11.200 colombianos foram assassinados desde que Uribe foi «eleito» (não inclui os mortos em combate entre as guerrilhas e as Forças Armadas). É um facto. Isto é legítimo da parte de um governo eleito?
16. Os organizadores desta manifestação, realizada a 6 de Março na Colômbia, têm vindo a ser sistematicamente liquidados. Desde esse dia até hoje, Leónidas Gómez, da União Nacional de Empregados Bancários; Giraldo Gómez Alzate, membro do Centro de Estudos e Investigações Docentes; e Carlos Burbano, da Associação Nacional de Trabalhadores de Hospitais e Clínicas foram alguns dos assassinados. Muitos outros estão ameaçados de morte. Isto é legítimo da parte de um governo eleito?
17. O número de desaparecidos ronda os 30 mil. Mais uma vez este número não inclui os desaparecidos em combate entre as guerrilhas e as Forças Armadas. É um facto. Isto é legítimo da parte de um governo eleito?
18. O inqualificável passado e presente de Álvaro Uribe e dos seus mais próximos colaboradores é conhecido dos EUA e da U.E. há muito. Está, por exemplo, aqui.
19. A Colômbia é campeã do mundo em assassinatos de sindicalistas e de jornalistas: mais de metade dos sindicalistas assassinados em todo o mundo. Só este ano já foram 28. É um facto. Isto é legítimo da parte de um governo eleito?
20. Fontes «subversivas»: Amnistia Internacional, Human Rights Watch, Confederação Internacional de Sindicatos Livres, Pólo Democrático Alternativo, Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos, comunicação social capitalista (e comunista e progressista também…) da América Latina, Espanha, EUA, etc.. Ah, é verdade, a CIA…
21. Em nenhum momento do meu artigo coloquei «as FARC acima do governo legítimo da Colômbia». O que escrevi foi: «Dizer que o governo Uribe é o mais à direita da América Latina dá apenas uma pálida imagem do seu posicionamento político e ideológico. Ele e sua base de classe são com frequência comparados aos regimes nazi-fascistas. Sobretudo depois de a oligarquia colombiana ter entrado no ramo das drogas e ter criado os paramilitares.»
22. Quanto à «legitimidade» de governos eleitos a história está cheia de maus exemplos a começar no de Hitler em 1933.
23. E quanto à minha sugestão de solidariedade que estou certo os blasfemos (e todos os seus leitores) não deixarão de prestar?
24. Para concluir vejamos o «órgão oficioso». Já li o mesmo comunicado na íntegra, ou quase, em inúmeras agências e órgãos de comunicação social de todo o mundo, em particular da América Latina. E?...
25. Reduzir as relações dentro de uma sociedade ao preto e ao branco dá sempre mau resultado. Elas são por demais complexas e têm miríades de cores como penso ter demonstrado…