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O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O Bem e o Mal revisitados (VI)

O discurso do choque de civilizações em quatro blogues portugueses

   Neste artigo o autor, João Valente Aguiar do Blog «Vinhas da Ira», analisa com profundidade a blogosfera que, embora se apresente e seja “um campo idilicamente democrático e plural, não deixa de ser sintomática a coincidência de os blogues com maior número de leitores internáuticos partilharem significativa parte do ideário neoliberal veiculado pelos grandes meios de comunicação social, por políticos, por think tanks e por empresários”. É essa a razão por que “tanto blogues auto-definidos como de esquerda como blogues assumidamente de direita raramente discordam em torno da substância da sua visão do mundo”.

(continuação)

II – Contradições e ambiguidades do discurso do choque de civilizações: algumas coordenadas teóricas sobre a teoria do capitalismo neoliberal

As teses do choque de civilizações, tanto na sua versão original de Huntington como na versão adaptada dos blogues portugueses do mainstream, não comportam uma série de elementos que nos parecem essenciais para a compreensão do actual cenário internacional. De facto, mais do que uma tentativa de compreensão e/ou explicação do mundo, o paradigma do choque de civilizações constitui-se como um empreendimento ideológico de justificação e legitimação da política externa dos EUA e seus aliados mais próximos e poderosos.

Podemos então relacionar o eurocentrismo, nomeadamente na sua formulação mais ocidentalocêntrica, com as teses do choque de civilizações, na medida em que este último não se distingue da defesa de um projecto político mundial de dominação. De facto, pode-se afirmar que tanto no modelo do choque de civilizações, como no eurocentrismo clássico, inventou-se um Ocidente de sempre, único e singular desde a sua origem. Ora, a construção de um Ocidente imutável e com características próprias e únicas aí existentes desde tempos quase imemoriais, implica igualmente a construção de um antagonista com características próprias e intemporais, apesar de opostas e consideradas como irreconciliáveis com os valores e vivências ocidentais. Por outras palavras, esta construção, arbitrária e mítica do Ocidente impunha em simultâneo a construção também artificial de outras (os Orientes ou o Oriente) em bases igualmente míticas, mas necessárias para a afirmação da preeminência dos factores de continuidade sobre a mudança.

O eurocentrismo/ocidentalcentrismo presente no modelo do choque de civilizações reproduz uma lógica que em alguns aspectos se pode considerar como nova. Na verdade, a sua vertente mais recente concentra-se mais na atribuição de dimensões e propriedades inatas a um universo geográfico-cultural, consagrando a passagem de um racismo genético e biologizante (Alemanha nazi) para um racismo geográfico e cultural. Desmontadas e desconstruídas por boa parte da evolução da Genética e da Biologia as noções da hierarquização biológica de raças e povos, o eurocentrismo reconverteu-se em novos moldes, sem nunca perder a sua trave-mestra – a pretensa superioridade civilizacional do Ocidente sobre as restantes civilizações. Esta assunção da superioridade do Ocidente mantém-se.

Explicitando, o que a nosso ver é factor de novidade prende-se com o menor enfoque dado à dimensão biológica, mas com o maior peso da proveniência cultural e da identidade cultural subjacente a uma determinada região do globo. Onde antes o cultivo de ódios em relação ao mundo exterior ao Ocidente assentava numa discursividade preponderantemente biológica, hoje o seu mais forte instrumento de transmissão é a fetichização da cultura. Se no colonialismo do século XIX as loas poéticas de Ruyard Kipling relativamente ao “fardo do homem branco” em dominar a periferia do sistema-mundo assentavam na inferioridade biológica dos povos não-ocidentais (considerando os negros e os índios como seres mais próximos dos animais do que dos seres humanos), a versão mais recente do ocidentalcentrismo aborda tudo o que diz respeito à subjectividade de uma determinada comunidade humana – religião, costumes, hábitos, visões do mundo, arte, linguagem, modos de sociabilidade, tradições, etc. – como algo congelado num circuito fechado, inscrevendo um carácter de perenidade e imutabilidade a essa mesma comunidade humana. Por outro lado, e de modo simultâneo, comunidades culturais com traços culturais e sociais distintos, são facilmente amalgamados num conjunto religioso-cultural mais vasto, como por exemplo, o Islão ou o Ocidente. Desta forma, dá-se apenas importância a um ou dois conjuntos de variáveis culturais – nomeadamente a religião – para obscurecer as diferenças enormes ao nível cultural, económico, político e social que comporta o chamado mundo muçulmano. No fundo, a uma variável generalizante – no caso do Islão, a religião muçulmana – reduzem-se e omitem-se todas as outras diferenças culturais, políticas e sociais dentro da chamada civilização islâmica. Estamos perante um método superficial que consiste em retirar conclusões totalizantes a partir de um detalhe unilateralmente captado. Mesmo o reconhecimento de diferenças e divergências internas no seio do Islão é invariavelmente subsumido e tomado como irrelevante no quadro do choque de civilizações.

O racismo geográfico e cultural do imperialismo em relação ao chamado Islão ancora-se, portanto, na assunção de que nenhuma sociedade pertencente a este bloco civilizacional foi, é e será alguma vez capaz, por si só, de implementar valores democráticos e de liberdade. Neste ponto podemos afirmar que duas arestas ideológicas se tocam inequivocamente: o liberalismo e o eurocentrismo/ocidentalcentrismo. Por um lado, este racismo geográfico e cultural resgata teses assentes na equivalência imediata e inquestionável entre democracia, liberdade e liberalismo. Fora do mercado, do trabalho assalariado e do Estado dominado e controlado por elites [2] que se revezam entre si para controlarem o poder político, nada é democrático e portador de mecanismos de construção democrática da sociedade. Logo, qualquer modelo alternativo que fuja aos mecanismos liberais e capitalistas de ordenamento das sociedades é inevitável e imediatamente classificado de não-democrático.

Por outro lado, se se reconhecer que ao Islão está vedado qualquer papel autónomo na construção das suas sociedades em termos de democracia e liberdade, então só o Ocidente o poderá levar a cabo. No fundo, a construção ideológica de um Oriente mítico, que tanto pode ser o Islão, o Japão, a Índia ou a China e cujas características são tratadas como definitivas e definidas simplesmente por oposição às características atribuídas ao Ocidente capitalista, pavimenta uma visão e um discurso que abona pela intervenção “missionária” do Ocidente naqueles territórios e populações.

O pai ideológica das teses do choque de civilizações, Samuel Huntington, é inteligente o suficiente para não abraçar de forma irracional e imediata as teses eurocêntricas do século passado que propugnavam pela homogeneização de todo o planeta à imagem e semelhança do Ocidente. O autor do choque de civilizações compreende que esse é um objectivo que, no curto e médio prazo, não está ao alcance dos EUA e dos seus aliados europeus. Contudo, isso não significa que haja um afrouxamento da assunção da superioridade do Ocidente sobre as outras civilizações. Na realidade, a defesa dos EUA e do Ocidente como potência e civilização hegemónicas, respectivamente, mantém-se intacta. O que Huntington e todos os autores pró-imperialistas chamam a atenção é para os limites actuais (e assumidos como meramente conjunturais) da dominação capitalista – incapaz de criar um mercado mundial homogéneo – e da dominação imperialista – incapaz de submeter pelas armas todas as populações e Estados não-ocidentais a um controlo absoluto e inquestionável por parte do Ocidente capitalista.

De um ponto de vista sócio-económico, onde o colonialismo era a modalidade de expropriação directa e abertamente violenta dos recursos sociais de produção, a partir das duas últimas décadas, neoliberalismo e ocidentalcentrismo combinam-se como uma nova forma de reconfiguração da dominação económica e política das periferias do sistema capitalista internacional. Basicamente, o controlo económico da periferia passa pelo amarrar das dinâmicas internas do mercado em cada território (os mercados nacionais da periferia) ao funcionamento do mercado mundial. Nesse sentido, o controlo da periferia sustenta-se no reforço das relações económicas que subterrânea e invisivelmente reconvertem e reconfiguram os mercados nacionais periféricos, transformando-os em zonas especializadas de produção de excedente económico, de acordo com os interesses dos grandes conglomerados económicos e dos Estados do Ocidente.

No que toca ao Islão, registe-se o impacto das dinâmicas neoliberais nos países do Médio Oriente. De facto, naquelas formações sociais existe uma evidente degradação do seu padrão de desenvolvimento. Na sua generalidade, são países com uma estrutura económica fundamentalmente assente na exploração e exportação de petróleo e gás natural e quase sem outro tipo de indústria, como vastas áreas do Norte de África e do Médio Oriente. Mesmo que em partes deste segmento da economia internacional as relações capitalistas de produção não sejam preponderantes, o seu grau de ligação aos mercados internacionais é inquestionável. Tão ou mais importante que o fornecimento de matérias-primas para o centro – que é, sem dúvida, um importante ramo de actividade destes países –, o que está aqui em causa é o bloqueamento do desenvolvimento destes países. De facto, este componente da periferia é atravessado por modos de produção não-capitalistas que têm um papel essencial a dois níveis:

a) na equalização da taxa de lucro médio internacional a partir da competição entre capitais com diferentes composições orgânicas;

b) no fornecimento de uma força de trabalho que se produziu de forma praticamente gratuita para o centro do sistema capitalista internacional, particularmente provenientes dos países do Magrebe.

Num outro ângulo, importa referir que os EUA e as principais nações da Europa ocidental lutaram activamente contra projectos de libertação e desenvolvimento nacional (Egipto de Nasser, Argélia de Ben Bella, Iraque antes de Saddam, Líbia de Kadhafi, Síria do Baas, Afeganistão e o Partido Democrático e Popular, Indonésia e a aliança do Partido Comunista Indonésio com sectores democratas daquele país, etc.). Todos esses projectos desenvolvimentistas ou populares, com evidentes diferenças entre todos eles, foram levados a cabo com o intuito de criar economias que permitissem estreitar o fosso na produção e distribuição de recursos económicos à escala mundial. Por intermédio da aposta em vias próprias de industrialização com sectores económicos diversificados e autosustentados, e com a tentativa de construção de aparelhos de Estado autónomos das directrizes das embaixadas dos anteriores países colonizadores, os projectos nacionalistas (e por vezes pró-socialistas) árabes e muçulmanos eram alavancas essenciais para quebrar a lógica de expropriação e de subdesenvolvimento que a organização capitalista da economia internacional lhes impunha. O apoio incondicional do chamado Ocidente a grupos integristas islâmicos nos anos 70 (Afeganistão) ou a futuros inimigos (como Saddam Hussein no Iraque) provam que a ofensiva contra a criação de um modelo nacional de desenvolvimento nos países muçulmanos, é uma peça-chave para se compreender o afundamento das burguesias nacionais e laicas daqueles Estados bem como da possibilidade de se ter implementado modelos alternativos e democráticos de desenvolvimento económico, político e social. O mesmo se passou com as forças e camadas sociais populares que participaram activamente nesses projectos. Ao invés, o imperialismo apostou sempre em fomentar o crescimento de classes dominantes locais compradoras, isto é, desligadas de um projecto de desenvolvimento industrial e provenientes do sector económico mais atrasado (a agricultura) e com uma cultura religiosa fanática. No fundo, classes dominantes sem objectivos económicos de criar um padrão de desenvolvimento económico e social autónomo, mas que se cingem à partilha da exploração de recursos energéticos com as classes dominantes ocidentais e a sectores de monocultura agrícola ou industrial. São estas classes dominantes locais que em países como a Arábia Saudita apoiam a linha política definida por Washington. São estas mesmas elites árabes locais que, em contextos de uma mais desigual partilha da pilhagem dos recursos e das riquezas, se transformam em talibans ou em grupos fomentadores do extremismo islâmico contra os antigos comparsas de pilhagem e opressão.

(continua)

                                                      

Notas:
[2] Elites políticas subordinadas às classes dominantes numa formação social e económica.

                                 

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