O Bem e o Mal revisitados (VII)
O discurso do choque de civilizações em quatro blogues portugueses
Neste artigo o autor, João Valente Aguiar do Blog «Vinhas da Ira», analisa com profundidade a blogosfera que, embora se apresente e seja “um campo idilicamente democrático e plural, não deixa de ser sintomática a coincidência de os blogues com maior número de leitores internáuticos partilharem significativa parte do ideário neoliberal veiculado pelos grandes meios de comunicação social, por políticos, por think tanks e por empresários”. É essa a razão por que “tanto blogues auto-definidos como de esquerda como blogues assumidamente de direita raramente discordam em torno da substância da sua visão do mundo”.
Conclusão
Toda a argumentação exposta no discurso imperialista do choque de civilizações e dos blogues analisados conduz para uma série de itens que vale a pena resenhar brevemente.
- A civilização ocidental seria a única formadora e a única agência portadora dos valores da democracia e da liberdade. Fora deste espaço geocultural não haveria capacidade autónoma dos restantes países para desenvolver qualquer tipo de valores e práticas emancipadoras. Por outro lado, só são tomados como aceites os valores do mercado, do chamado “comércio livre” e da democracia representativa não-participativa e bipolarizada entre uma esquerda e uma direita que apenas diferem na forma e nunca na substância das suas orientações programáticas.
- Não tendo condições para colonizar e ocupar territorialmente e para evangelizar (religiosa e culturalmente) todo o espaço islâmico, a saída para o Ocidente seria, neste momento, fortalecer a sua unidade ideológica em torno dos princípios enunciados no item anterior e, por outro lado, enveredar por acções militares que possam esmagar militarmente ou neutralizar o seu inimigo.
- Sendo os valores do Ocidente tomados como os mais aptos ao desenvolvimento de uma humanidade tolerante e harmoniosa, torna-se muito fácil deduzir daqui que a chamada civilização ocidental se personifica no Bem. Ao inverso, o Islão – ainda por cima tomado no seu conjunto, englobando populações civis, Estados e organizações terroristas – seria um inimigo visceral dos valores do Ocidente, logo, do Bem. Com a mesma facilidade, o Islão encarna o Mal.
- Todo e qualquer esforço intelectual de indagação do fenómeno e que, minimamente, confronte toda esta construção teórico-ideológica do choque de civilizações é imediatamente taxado de irrealista e insensato. Um verniz anti-intelectualista e abertamente defensor do uso da violência e da força militar reveste todos os blogues do mainstream português.
- Nenhum dos blogues rejeitou o ocidentalcentrismo impresso nas teses do choque de civilizações. Pelo contrário, aprofundam e expandem o seu espectro ideológico a mais camadas da população. Ao mesmo tempo, não se encontra qualquer tipo de desenvolvimento teórico que equacione o funcionamento do sistema internacional capitalista nas suas bases materiais, portanto, económicas e políticas. No fundo, toda a problematização realizada nos blogues aludidos (amostra que nos parece real e definidora de boa parte da blogosfera mainstream) centra-se, a mais das vezes, na construção de estereótipos. Toda a problematização teórica relativiza o debate em termos de coordenadas matriciais das Ciências Sociais, privilegiando a explanação de enunciados morais e moralizantes. Dessa forma, simples questões relacionadas com a organização internacional do sistema capitalista como as que expusemos na secção anterior, são completamente passadas ao lado. Em jeito de remate, não deixa de revelar uma forte ambiguidade o facto de
a) os maiores apologistas das virtudes da economia global e competitiva e que justificam todo o tipo de regressões de direitos sociais como inevitabilidades da vivência no seio dessa mesma economia global,
b) serem precisamente os mesmos que cindem o sistema capitalista internacional em duas partes estanques, mutuamente exclusivas e sem quaisquer tipo de veios de interacções económicas, sociais e políticas que não sejam choques inter-religiosos ou inter-civilizacionais.
Sociólogo