Anatomia de um golpe
1. A 11 de Setembro de 1973, no Chile de Salvador Allende (cujo centenário do nascimento se comemora neste ano de 2008), Augusto Pinochet executava a fase final de um golpe. Golpe há muito preparado e anunciado pela comunicação social dominante como «inevitável». Golpe que desde o início foi fomentado, financiado e apoiado pela CIA, obedecendo às ordens da Administração Nixon.
Um ano depois da sangrenta tomada do poder o então Presidente, não eleito sublinhe-se, Gerald Ford foi entrevistado pela revista «Time». Questionado sobre que lei internacional dava aos EUA o direito de tentar desestabilizar um governo constitucionalmente eleito de outro país respondeu lapidar: «Não vou pronunciar-me aqui sobre se isso é ou não permitido por leis internacionais. É um facto reconhecido, no entanto, que tanto historicamente como no presente, tais acções se aplicam no melhor interesse dos países envolvidos. O nosso governo, tal como outros governos, empreende essas acções para ajudar a boa orientação das políticas externas e para proteger a segurança nacional... A CIA tentou ajudar, no Chile, a preservação dos jornais opositores e das rádios e apoiar os partidos da oposição».
Esta visão continua hoje em vigor nos EUA e na comunicação social dominante. Analisemos o que está acontecer na Bolívia.
Os mesmos que estão sempre pronta a dar lições de democracia aos outros, noticiaram como facto trivial o recente referendo convocado neste país pelo presidente Evo Morales. De notar que este acto se realizou a meio de um mandato obtido em 2006 com 53,4% dos votos. Que o Presidente para se manter em funções teria de ter mais votos do que quando foi eleito (se, por exemplo, tivesse tido 53%, teria de abandonar o cargo). Que Evo Morales recolheu 67% dos votos.
Pois qual a linha dominante de análise dos mais recentes acontecimentos na Bolívia? A culpa é de Evo Morales, pois claro. O «malandro» nacionalizou as indústrias de gás e do petróleo, respeitando assim o seu programa eleitoral sufragado nas eleições. O «desestabilizador», vejam lá, canalizou as verbas do petróleo e do gás natural para um programa nacional de assistência a idosos. Mais. Fê-lo sem atender às exigências dos (33% de votos no referendo) que, nas respectivas regiões, consideravam que essas verbas eram deles e só deles e não do País. Mas não se ficam por aqui na sua absurda argumentação. Se Evo Morales não aceitar os «conselhos» da chamada «comunidade internacional», abdicando da sua luta pela libertação e promoção social dos mais desprotegidos do seu país, então são de esperar as inevitáveis consequências.
Será que os que assim escrevem e falam não se apercebem que, queiram ou não, estão a preparar o terreno para novos 11 de Setembro de 1973? E o que proclamariam se as autarquias do PSD, ou da CDU, se recusassem, por exemplo, a entregar os impostos cobrados no seu território, a pretexto de que discordavam do TGV ou do novo aeroporto? E se as referidas câmaras ameaçassem separar-se e proclamar a independência? E se, pela violência, promovessem o assalto e vandalização dos edifícios governamentais? E matassem quem defendesse o governo legítimo de Portugal? Alguém dúvida do que diriam e escreveriam?
2. Uma nota a propósito da «democracia» das eleições americanas. Em 2004 esteve-se à beira de um absurdo e de um escândalo de ainda maiores proporções do ponto de vista numérico do que o ocorrido 4 anos antes com Al Gore. E, curiosamente, de sentido político contrário. Com efeito John Kerry teve menos 3 milhões de votos que G.W. Bush. Mas se tem ganho no Estado do Ohio, para o que só teria precisado de mais 150 mil votos, teria sido ele o Presidente eleito. Como escreve o Vítor Dias, parece pois que nas «grandes democracias» há uns «pequenos» problemas democráticos.
Especialista em Sistemas de Comunicação e Informação
In jornal "Público" - Edição de 19 de Setembro de 2008