O meu Marx é diferente
A propósito da actual crise económica e financeira do sistema capitalista a obra de Karl Marx ganhou um novo relevo. Mas muito do que se escreve e diz revela um desconhecimento (ou ignorância) atroz. Falam de Marx, mas aparentemente nunca o leram. Quanto mais estudarem-no. O resultado é uma deturpação objectiva do seu pensamento. Uma caricatura ridícula da realidade da sua acção.
É caso para dizer que o «meu» Marx é diferente.
O meu Marx é o que converteu a utopia em pensamento político e este em acção revolucionária. O que descobriu as leis objectivas do desenvolvimento social e provou cientificamente a inevitabilidade da superação do capitalismo e do triunfo do socialismo. O que analisou a vida social como algo que está em permanente movimento. O Marx determinista, mas não fatalista.
O meu Marx é o que reelaborou criticamente todas as melhores conquistas do pensamento humano no domínio da filosofia. O que considerou que na sociedade, como na natureza, existem nas situações e nos fenómenos relações objectivas de causa e efeito. É o Marx da afirmação: «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo». Ou de «A nossa teoria não é um dogma, mas um guia para a acção». Ou, ainda, o da constatação cem por cento actual de que «as ideias dominantes de um tempo foram sempre apenas as ideias da classe dominante». É o Marx da dialéctica como método de conhecimento e transformação do mundo. Da prática como fundamento e fim do conhecimento. Do conhecimento como reflexo do mundo objectivo.
O meu Marx é o da análise do capitalismo e das leis fundamentais da reprodução do capital que se revelam de uma evidente modernidade. Como a lei do valor e a teoria da mais-valia, que esclarece os mecanismos da exploração capitalista. Como a lei da baixa tendencial da taxa de lucro, que o capital tudo faz para contrariar e que determina a financeirização crescente da economia. Como a lei da pauperização relativa, que desvenda as causas de fundo inultrapassáveis pelo capitalismo das crises de sobreprodução.
É o Marx da «globalização» teorizada em 1848: «A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se fixar em toda a parte, estabelecer-se em toda a parte, criar ligações em toda a parte.» Ou: «A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, deu uma forma cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países.»
O meu Marx é o da a teoria do socialismo científico. O da missão histórica e papel dirigente da classe operária na transformação revolucionária da sociedade, pondo fim à milenária exploração do homem pelo homem e abrindo caminho à história verdadeiramente humana de todos os homens. O da teoria da luta de classes: «a história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes». O de «o moderno poder de Estado é apenas uma comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa». O de «as proposições teóricas dos comunistas de modo nenhum repousam sobre ideias, sobre princípios, que foram inventados ou descobertos por este ou por aquele melhorador do mundo. Elas são apenas expressões gerais de relações efectivas de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se processa ante os nossos olhos.»
Como Marx refere, no prefácio à primeira edição de O Capital, «a sociedade actual não é nenhum cristal fixo, mas um organismo capaz de transformação e constantemente compreendido num processo de transformação».
Espero ter demonstrado que o meu Karl Marx (e Friedrich Engels) é efectivamente diferente das vulgatas que por aí se vão «vendendo». E que teriam levado Marx a afirmar, de novo, «se isso é marxismo, então eu não sou marxista»...
Especialista em Sistemas de Comunicação e Informação
In jornal "Público" - Edição de 20 de Fevereiro de 2009