Não, vaidoso! a ciência não pode dar um passo sem ser auxiliada pela fé!
(...)
O Sr. Adolfo Coelho dissera no Casino, ao que parece - que a ciência no seu domínio era independente da fé.
Pois bem! um correspondente eclesiástico da Nação exclama, voltando-se mentalmente para o Sr. Adolfo Coelho: «Como ousa o sábio dizer que a ciência é alguma coisa sem a fé? Não, vaidoso! a ciência não pode dar um passo, um único, sem ser auxiliada pela fé!»
Queremos que esta seja a verdade; mas pensemos então como a vida deve ser cruel e molesta para aquele eclesiástico e para toda a redacção da Nação. Imaginemos um destes homens piedosos, à noite, de chambre, à luz do candeeiro, tomando o rol à criada. Já examinou as parcelas, está a fazer a soma. A cena é solene. Uma luz mística banha as prateleiras. O gato ressona.
— 3 e 7, calcula o clérigo suando.
E imediatamente pára. A ciência bem lhe diz que são 10, mas a ciência não é nada sem o auxilio da fé - e o homem do Senhor corre a consultar Santo Agostinho. Nada porém ensina sobre essa matéria o sublime Doutor. O eclesiástico arregala para a criada um olho pávido:
— Depressa, filha, baixa-me daí a summa de S. Tomás!
E folheia...
E para a casa das dezenas interroga Santo Atanásio, e para a das centenas os Evangelhos comparados!...
Já é de madrugada: a criada dormita; a alvura esbatida do dia faz grandes fios pálidos nas vidraças; as andorinhas gritam na sua glória e na sua alegria; os rebanhos balam; as árvores espreguiçam-se nos braços do vento; Deus, o bom Deus, o Deus Justo, vive na infinita transparência da luz - e o pobre eclesiástico, pálido, sonolento, aturdido, enterrado em in-fólios, folheia o Dicionário de Bergier, Bossuet, Noailles, os concílios de Trento e de Florença, Orígenes, Lactâncio, João Clímaco, Fleury, a Cartilha, o Larraga - para saber se pelas leis da Igreja lhe é permitido afirmar que «11 noves fora, é 2!»
E erra a soma!
(...)
Nação, Nação, boa amiga! não nos queiras mal. Tu és velha, tu és fabulosamente velha, tu és de além da campa! Mas tens o carácter firme. E no meio da leviandade movediça destes partidos liberais - tu tens uma vantagem. Lançaste a âncora no meio do oceano e ficaste parada. Estás apodrecida, cheia de algas, de conchas, de crostas de peixes, mas não andaste no ludíbrio de todas as ondas e na camaradagem de todas as espumas! Tu eras excelente - se fosses viva. Mas és um jornal sombra. És tão viva como Eneias. Tão contemporânea como Telémaco.
Volta, Nação, para ao pé das tuas sombras queridas! E apresenta as nossas saudações carinhosas ao Sr. D. Afonso II, o Gordo!
Uma Campanha Alegre, (Volume I: Capítulo XIII: Máximas e opiniões da Nação, jornal), por Eça de Queirós
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adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge