E o monstro ainda não está no Santo Ofício?
(...)
Começou então o voltarete do senhor marquês. Você não foi admitido à partida do fidalgo: fez apenas um gamão subalterno com um monsenhor da Patriarcal. E pela sala, no entanto, iam sussurrando as conversações.
Discutia-se o processo de uma linda mulher de Alfama que comia crianças em salada: um desembargador aconselhou, para curar quartas, pérolas que tivesse usado a Rainha, moídas em pó: falou-se da escandalosa aparição de Belzebu no convento do Sacramento de Alcântara: e uma dama contou do judeu que dera uma dentada na perna do Senhor dos Passos da Graça!...
Isto arrepiou de horror. E foi então que você, Pinheiro Chagas, disse, depois de se pitadear com gozo:
— Mas há pior! Há pior!...
— Pior que a dentada? Não, ninguém podia acreditar que houvesse pior!
E você, pausado e grave, narrou o meu nefando caso: um herege, um jacobino, um traidor comprado pelo ouro do Brasil, tinha escrito que Portugal fora uma colónia brasileira, e que houvera horrores na nossa dominação da Índia!...
Fez-se na sala um silêncio trágico. As sedas, apavoradas, encolheram-se contra os monsenhores. De comovido, o herdeiro ilustre da casa de Ângeja perdeu a vaza. E os morrões das tochas pareceram mais tristes...
O sr. prior de S. Julião, esgazeando o seu olho de coruja, exclamou a tremer:
— E o monstro ainda não está no Santo Ofício?
— Trago-o de olho, meu reverendo — disse você, severo. — E hei-de ir falar ao Manique...
Ciciou então pelo sarau um suspiro de alívio. A sociedade estava salva! Chagas velava.
Já em baixo tilintavam os guizos das liteiras. Saiu-se. E foi você que, chegando-se ao senhor arcebispo de Tessalonica, e querendo resumir numa palavra todo o mundo de verdades e de ideias que se agitara nesse sarau, o esplendor intelectual que aí brilhava e para que você concorrera — disse respeitosamente ao prelado:
— Portugal é pequenino, mas é um torrãozinho de açúcar.
E sua eminência replicou, depois de arrotar:
— Tem você razão, brigadeiro Chagas.
Brigadeiro, sim! Brigadeiro do tempo da senhora D. Maria I! O último brigadeiro patriota!
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adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge