A Guerra Civil de Espanha vista por Manuel Tiago (3)
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Pelo caminho, perguntaram para onde ia tanto pessoal.
— Que adónde? Al asalto del Cuartel de la Montaña, adónde querias que fuera?
À medida que se aproximavam do centro, intensificava-se o tiroteio, passavam mais carros com bandeiras, via-se mais gente com espingarda à bandoleira ou na mão.
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Pelas ruas estreitas da cidade velha, correram para onde todos corriam, cada vez mais envolvidos por intenso tiroteio. Já não eram disparos soltos, mas a atmosfera dominada pela orquestra ininterrupta de um fogo cerrado. Disparos próximos e o silvar de balas de origem indeterminada, a diversidade dos tiros de pistola, espingarda e metralhadora, o som simultâneo, sobreposto ou fundido, de zonas de fogo às mais diversas distâncias, o abrandar de umas, a brusca intensificação de outras, o ressoar compassado mais distante dos tiros de canhão, os ecos respondendo a ecos fluindo e refluindo por ruas e ruelas — a grandiosa e terrífica sinfonia de uma batalha urbana.
O inimigo foi surgindo pouco a pouco. Emboscado num portal ou numa esquina, cortando o avanço por uma rua transversal, ou abrigado em improvisados obstáculos. Até aí seguiram uma corrente de gente armada, dando tiros como os outros, sem saber onde começava e onde acabava a linha de confronto e sem discernir qualquer comando.
Foram finalmente retidos num cruzamento, onde pela primeira vez se apercebia alguém que comandava, ou pelo menos orientava Três ou quatro civis armados indicavam a uns e a outros que se chegassem aos prédios e aos vãos das portas e seguissem em frente com cuidado. Logo adiante, com o som da fuzilaria a dominar o espaço, as precauções intensificaram-se. A uma esquina, deitados por terra, atrás de uma tosca barricada, populares faziam fogo contra um inimigo que os recém-chegados não viam.
Inesperadamente os da barricada deixaram de disparar, levantaram-se de armas na mão, acenaram aos recém-vindos para os seguirem, dobraram a esquina colando-se aos prédios e avançaram rua fora, agora sem oposição. Noutra esquina o tiroteio recomeçou e Manuel e António, com os outros, atiravam também. Os fascistas, certamente reforçados, opunham-se agora dos telhados, varando as ruas com saraivadas de balas.
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Ao voltar de mais uma esquina, com o redobrar violento do fogo, depararam, aí a duas centenas de metros de distância, com os altos muros e o portão negro do Cuartel. De fora, nas primeiras linhas, civis armados e soldados fardados das unidades fiéis à República alvejavam o friso dos muros, donde sem parar disparavam os fascistas. Avançar mais como? Era campo descoberto, sem qualquer abrigo. Depois o muro e o portão.
Não demorou porém muito a resistência. Ainda na manhã a batalha se decidiu. Sem que os assaltantes o esperassem, abriram-se os portões e, de roldão, em mangas de camisa e agitando os braços ao alto com farrapos brancos, saíram dezenas de soldados, que correram a atravessar o campo raso.
Atrás deles tiros dispersos fizeram cair alguns. Depois, durante breves minutos, o fogo cessou. Então, vindos de todos os lados, avançaram em sentido inverso soldados e centenas de populares, armados uns, desarmados outros, que romperam pelo portão e se sumiram lá dentro. Manuel correu veloz e entrou também. Cá fora ouviu-se furiosa fuzilaria. Aos tiros de espingardas, metralhadoras e pistolas somavam-se agora algumas explosões soltas de granadas.
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Soube-se depois. Aos que entraram no Cuartel apresentou-se um cenário aterrador na parada. Reféns apanhados no autocarro — homens, mulheres e crianças — jaziam por terra, estendidos uns, contorcidos outros, chacinados, manchados de sangue ainda fresco.
Boa parte dos soldados tinham-se sublevado, aberto os portões e passado para o lado republicano. Outros, despida a farda, eram deixados seguir em paz. Os oficiais foram-se rendendo também. A resposta ao crime foi inevitável. Os primeiros assaltantes, farda que vissem atiravam a matar. A guarnição militar de Madrid, sublevada pelos fascistas, fora derrotada pelo povo em armas.
— A Carabanchel! — gritaram de uma camioneta.
— A Carabanchel! A Carabanchel! — repetiram outros.
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Carabanchel. Aquartelamento militar nos arredores da capital. Vários regimentos. Soldados das unidade madrilenas fiéis à República e o povo armado começaram o cerco.
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A conversa suspendeu-se num breve embaraço. Depois o camarada retomou a palavra e explicou.
Já tinham vindo lá a casa camaradas espanhóis que o haviam informado da situação. Pelo que então se sabia, no Sul tropas marroquinas trazidas por Franco apareciam a par dos carlistas requetés como a principal força de combate. Com extrema ferocidade espalhavam o terror. De uma maneira geral as unidades militares tinham acompanhado o golpe. Os fascistas avançavam para Norte pelo ocidente da Andaluzia e avançavam para Sul através de León e Castela a Velha, vindos de Salamanca e de Valladolid. O perigo agora estava na serra do Guadarrama, defesa natural de Madrid, e em Talavera de la Reina a ocidente. Entretanto, se no interior do Norte o golpe tivera êxito, de Madrid até ao Mediterrâneo o povo derrotara os fascistas e apoiava o Governo Republicano. As Astúrias estavam com a República. Na Catalunha, os anarquistas tinham a situação nas mãos. Duas colunas do povo armado avançavam para Aragão.
— E Huelva? — interrompeu António impaciente pela falta de referência.
Havia razões para a pergunta. Precisamente em Huelva estavam os dois camaradas que há semanas tinham sido presos pela Guardia Civil, apanhados ao passar clandestinamente a fronteira pelo Guadiana. Ali em Madrid estavam procurando que a intervenção dos camaradas espanhóis conseguisse que o Governo os libertasse para regressarem a Portugal. Ele próprio teria que tratar da passagem.
— As notícias são más, amigo — respondeu o camarada. — Pelas notícias que nos chegam, Huelva está nas mãos dos fascistas. Dos dois camaradas nada sabemos.
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Excertos do Capítulo 2 de "A Casa de Eulália"