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O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

A Guerra Civil de Espanha vista por Manuel Tiago (4)

(...)

Militarmente derrotados, os fascistas tinham, em numerosas zonas da cidade, subido para os telhados, passavam de uns prédios para outros e das azoteas faziam fogo sobre quem passava. De baixo respondiam, mas era difícil acertar-lhes e desalojá-los. Quando o fogo abrandava, os que de baixo combatiam, ao mesmo tempo que com repetidas rajadas forçavam os dos telhados a suspender o fogo, gritavam para quem queria atravessar a rua.

— Carnet en la mano! Carnet en la mano!

As pessoas levantavam o braço com os documentos na mão, corriam o mais que podiam para chegar ao outro lado a procurar abrigo das balas que não tardavam a chover.

(...)

Avançava a manhã e o calor. As ruas enchiam-se de movimento. Homens, mulheres, jovens, crianças, circulavam sem se saber bem para onde iam. O paqueo, mais ou menos, vivo continuava. A todo o instante, a grande velocidade e com súbitas travagens a evitar atropelar alguém, passavam carros com enormes bandeiras. Vermelho, amarelo e lilás do partido republicano, vermelho com a sigla PSOE do partido socialista, vermelho com a foice e o martelo dos comunistas, preto e vermelho em diagonal dos anarquistas. Bandeiras quase do tamanho dos carros, cada qual a querer que a sua fosse a maior.

Apesar da guerra civil que começava, das notícias vindas das regiões ocupadas pelo golpe, do avanço das tropas fascistas, das violências e atrocidades já conhecidas, do paqueo que continuava, o ambiente nas ruas era mais que calmo, despreocupado. Em Madrid o golpe fora derrotado. O povo da capital respirava fundo. Milhares de pessoas passeavam com manifesta alegria.

(...)

Tiroteio. Execuções sumárias por uns e por outros. O general Fanjul conseguira escapar-se do Cuartel de la Montaña. Os fascistas derrotados em Madrid continuavam a bater-se em grupos dispersos, esperançosos de que Franco chegaria prontamente à capital.

(...)

Quando anoiteceu não se acenderam as luzes na Gran Via. No escuro da noite mal se divisavam os vultos enormes dos edifícios. Dos lados da Puerta del Sol, cortando o espaço, chegava o ruído do paqueo. Na avenida descendo para a Plaza de España ouviam-se passos de gente que ainda se deslocava na cidade.

Aqui e ali grupos armados. Alguns explicavam o que havia a fazer e orientavam as coisas. Comandantes espontâneos a formar-se e a afirmar-se.

Os grupos colocavam-se emboscados às esquinas das transversais. Se os fascistas repetissem a façanha anterior, era preciso fazê-los parar.

Não tinha passado muito tempo da explicação, dois faróis luziram lá ao cimo da avenida. Correrias no escuro de gente a abrigar-se. Logo o carro avançou desalvorado avenida abaixo, abrindo fogo de automáticas a varrer os passeios e a destruir as montras.

Na primeira, na segunda, na terceira transversais soaram nas esquinas tiros de espingarda e pistola, uns atrás dos outros, mas o carro, sempre metralhando, passou uma, passou outra, e acabou por sumir-se na Plaza de España ao fundo da avenida. Um morto e dois feridos foi o lastro que deixou nos passeios.

— Cabrones! — soou uma voz no escuro, cortando o silêncio que se seguiu.

Não decorreu muito tempo sem que a cena se repetisse. Dessa vez o carro foi atingido, talvez na direcção, talvez nos pneus. Não parou entretanto. Sempre fazendo fogo, mal controlada a direcção, conseguiu também escapar-se.

— Me cago en su madre! — indignou-se Pepe que, com António, com Renato, com o seu grupo, se tinha emboscado numa esquina. — Qué mala puntería!

Transcorrida meia hora, ouviram-se de novo súbitas fuzilarias e ruidosas derrapagens. Um carro surgiu de uma transversal, deu rápida curva para a avenida e arrancou em vertiginosa embalagem na descida, faróis nos máximos apontados aos olhos de quem o defrontasse. O grupo fez fogo. O carro avançou, aproximou-se mais, mais, quase a passar e de súbito um vulto saltou da esquina para o meio da faixa de rodagem, os faróis avançavam — «ele mata--se, ele mata-se!», pensou António — mas logo, certamente por reacção instintiva do que guiava, o carro desviou a direcção, derrapou em pião e com estrondo foi estacar do outro lado da via, o capot enganchado de encontro a um poste da iluminação, o claxon a tocar como um alarme. De dentro saltaram alguns vultos a fazer fogo e procurando escapar-se ao longo dos prédios. Não foram longe. Um atrás do outro caíram varados. No local correram as patrulhas a rodear o carro. Quebrando o novo silêncio que se fizera, ouviu-se um único tiro. De pistola.

Na confusão que se gerara no escuro, custou a António encontrar Renato. Ao ver o vulto lançar-se à frente do carro com os braços levantados, parecera-lhe ser ele.

Quase indignado, pelo perigo irreflectido que o camarada correra, perguntou:

— Foste tu, não?

— E então? — replicou Renato nas calmas.

(...)

Excertos do Capítulo 3 de "A Casa de Eulália"

                                                                              

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