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O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

A Guerra Civil de Espanha vista por Manuel Tiago (5)

(...)

Já o Sol ia alto na manhã quente de verão, sentou-se no solo a descansar os pés e olhou em volta.

Donde viera, para ocidente e para sul, alongava-se a planura a perder de vista. Amarela, luminosa e tranquila. Nenhum sinal da guerra cruel que sobre ela se travava, dos massacres, das destruições, da fuga dos povos em busca da salvação.

Para nascente e para norte, recortando agora o horizonte, ondulavam colinas com árvores perfiladas ou tufos verdes anunciando a proximidade de aldeias ou casais.

A confirmar a ideia, ao dobrar uma ondulação do terreno, deparou com duas casitas arruinadas e desertas e, a partir dali, um inesperado declive por entre arbustos e mato. Serpenteando na descida, carreiros irregulares de terra ocre desenhavam com nitidez na natureza o repetido pisar de gente.

Logo adiante, surpresa, deu com um homem de pé à sombra de uma azinheira solitária. Ali a poucos passos. Que poderia fazer um homem sozinho naquele deserto? Parou. Por sua parte o homem olhou desconfiado tão rara figura.

— Buenos dias... — atirou António.

O homem murmurou palavras incompreensíveis e empertigou-se como que temendo uma agressão.

— Buenos dias... — repetiu António.

— Buenos dias — respondeu finalmente o outro.

— No hay ningún pueblo en las cercanias? — perguntou António.

O homem encolheu os ombros ante tal disparate.

— Qué pueblo?... E acrescentou, quase agressivo:

— Adonde vá usted?

— Los fascistas no están lejos — explicou António.

O homem calou-se. Depois com súbita decisão:

— Siga usted su camino, que yo sigo el mio — voltou as costas, saiu da sombra da árvore e deu dois passos a afastar-se.

Num salto sobre os pés doridos, António pôs-se-lhe no caminho.

— Me hacen falta unas botas. Estoy descalzo, no puedo andar...

Difícil definir o tom das palavras, misto de imposição e de súplica.

— No puedo hacer nada — condescendeu o homem e respondeu à pergunta anterior. — No hay ningún pueblo en las cercanias.

António sentia-se atordoado por um turbilhão de ideias contraditórias. Só havia uma solução. Era má. Mas a única. A única. E insistiu nesta palavra para tomar a decisão.

— Sus botas! — disse ameaçador.

— Está usted loco o qué? — respondeu o homem engrossando a voz. — Siga su camino que yo sigo el mio.

— Alto aí! — gritou António. — Usted me vá a dar sus botas porque tengo que llegar hasta Madrid.

— Está loco! — repetiu o homem e fez menção de romper caminho.

Estacou. Diante dele viu apontado o pesado Smith 32 na ponta do braço estendido.

— Usted me perdone — disse António —, pero me dá las botas o le mato!

O homem ainda hesitou.

— Mato mismo! — gritou António, apontando o revólver.

Então, subitamente apressado, o homem sentou-se no chão, descalçou as botas e ficou quieto, estupefacto, sem saber que fazer.

António calçou as botas com dificuldade. Os pés feridos quase o obrigavam a gemer. Felizmente o homem tinha pés grandes e volumosos e as botas não comprimiam as feridas.

— Usted me perdone, amigo — disse ainda António, sempre empunhando a arma. — No tengo outra solución. Me perdone, amigo.

Tinha consciência de que era absolutamente inútil e tonta a explicação. Sentia porém necessidade de dizer aquilo e muito mais.

Após breves momentos afastou-se, deixando o outro sentado no chão, olhando aturdido as meias nos próprios pés.

Algumas passadas mais longe, António parou, voltou-se para trás, triste e desconsolado consigo próprio, com vontade de voltar e restituir as botas ao homem. Depois abanou a cabeça a sacudir remorsos e afastou-se.

(...)

Tudo pareceria dar razão ao pai de Conchita. O que poderia na realidade servir os fascistas nesse descampado? Donde poderiam vir, para onde poderiam seguir? Para quê e porquê uma incursão na extensão da planura quase deserta?

Não passou porém o dia sem que tal optimismo fosse desmentido. A umas duas horas de marcha António deu com três corpos caídos à margem de um carreiro. Dois homens e uma mulher, enrodilhados, mortos, exalando o cheiro fétido da decomposição. Centenas de metros adiante, mais corpos, estes distantes uns dos outros, como se alvejados ao fugirem. Um homem, uma mulher, uma criança. Terra, sangue, moscas e formigas.

Donde teriam vindo os assassinos? Para onde iriam? Quem eram afinal? Com que fim uma incursão na planície deserta?

«Por qué iban a hacernos daño?», questionara o pai de Conchita. «Aqui no hay nada que les pueda servir.»

Ilusão que nessa mesma tarde teve novo desmentido.

Tendo caminhado mais duas ou três horas, António deu com outra casa isolada. Frente à porta um homem morto, o rosto esmagado numa pasta vermelha em que se distinguiam os olhos abertos e espantados que a morte não fechara. Na soleira uma mulher também morta, num mar de sangue coalhado e seco, roupa rasgada, saia erguida, seios nus, vários golpes no peito e pescoço. Lá dentro mais ninguém. A mísera morada não apresentava sinais de ter sido revolvida.

Embora faminto e cansado, António não se lembrou sequer de procurar na casa com que matar a sede e a fome. Nem de procurar meias para os pés feridos e uma camisa para substituir a que rasgara. À memória saltou-lhe apenas de novo a frase do pai de Conchita: «Si no hay nada que les pueda servir por qué iban a hacernos daño?»

E afastou-se o mais rápido que lhe permitiam a fadiga e o trambolho dos pés.

(...)

Excertos do Capítulo 4 de "A Casa de Eulália"

                                                                              

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