Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

Sinais de Fogo: A Revolta dos Marinheiros de 8 de Setembro de 1936 (2)

(...)

Vesti outra vez o pijama, fui tomar café. Sentada à mesa, minha mãe lia atentamente o jornal. Debrucei-me por cima do ombro dela, para ler também.

— Senta-te e come primeiro, que são mais do que horas — por­que embirrava que alguém lesse por cima do ombro dela, e nem o sensacionalismo do caso lhe alterava o reiterado hábito.

Enquanto eu comia, ia-me recitando excertos de noticiário. Mas eu detestava ouvir ler por fracções: — Leia, que eu leio depois.

Mas minha mãe prosseguiu apaixonadamente: — «Uma revolta a bordo do navio Afonso de Albuquerque e do contratorpedeiro Dão...» Ora aí está. «Algumas dezenas de cabos e marinheiros tomaram conta dos navios»... Coisa de gente ordinária... Marinheiros, ui que gente!... Ah, espera, «marinheiros, representando uma pequena parte das guarnições daqueles barcos, tomaram conta dos navios»... Foram poucos, está-se a ver... «prenderam os oficiais de serviço»... Prender os oficiais, que indisciplina... «e tentaram sair a barra para se irem juntar à esquadra marxista espanhola»... Para onde é que eles iam?

—  Juntar-se à esquadra espanhola, à do governo.

—  Qual governo, aquilo não é governo, estás a ver o resultado dos maus exemplos? Ouve, espera. «Um fogo violento e certeiro das baterias de Almada e do Alto do Duque reduziu os rebeldes à impotência»... Bem feito, foi a tempo... «Em poucos minutos»... Durou pouco, por isso não chegámos a ouvir nada... «obrigando-os a arvorar a bandeira branca, quando os navios estavam já a meter água»... Meter água? (Ir ao fundo — expliquei eu). «À parte estes dois navios, toda a esquadra se manteve absolutamente disciplinada.» Afinal foram só dois navios. E não mataram os oficiais (havia na voz de minha mãe como que uma decepção inconsciente que a levou a percorrer o jornal com precipitada atenção). Não, não dizem nada de terem matado os oficiais.

—  Só podiam matar dois, um em cada um.

—  Essa agora! Pois não há tantos em cada navio?

—  Há, mas vão ficar a casa. E como nos quartéis. E é o que aí diz, não é? «Prenderam os oficiais de serviço.» O que quer dizer que só estavam lá os oficiais de serviço.

—  É... não mataram os oficiais de serviço... Mas não diz aqui se os navios foram ao fundo... Foram só dois, porque aqui diz que «dos vinte e um navios que ontem se encontravam surtos no Tejo apenas dois se sublevaram, capitaneados por pequenos comités». Aqui está... «Desembarque dos mortos, dos feridos e dos presos...» Vês?... Houve mortos e feridos.

— Os marinheiros e os cabos.

— Ah, espera... o governo já sabia (estremeci). «O governo, que já conhecia as intenções dos sublevados, tinha tomado as providências necessárias para os reduzir imediatamente à obediência.» Olha, e vão castigar «os oficiais e sargentos que não tenham empregado todos os esforços para dominar a insubordinação».

—   Como é que é isso?

—   Como é? Claro que devem ser castigados.

—   Mas, se eles não estavam a bordo, porque só estavam os oficiais de serviço, é porque não sabiam de nada, e o governo também não. Ou o governo sabia e eles não, e como é que agora pagam pelo que não sabiam?

—   Não me perguntes isso a mim. Mas que confusões estás tu a fazer? Olha, sabes que mais? Quem manda manda. O governo lá tem as suas razões. Oh, que horror... Tinham a bordo exemplares, diz aqui, do Marinheiro Vermelho. Que horror.

—   Horror porquê? A mãe já viu esse jornal alguma vez?

—   Nem preciso, basta o nome. Marinheiro já é gente de bebe­deira e facada, homens cheios de vícios, ainda por cima «vermelho»! Onde é que tu vais?!

—   Vou ver navios.

—   Tu não sais daqui! Bem basta que o teu pai tenha saído, por obrigação. Quem o mandou telefonar para o escritório?! Claro que logo disseram que não havia nada, aquela gente não perdoa nem uma revolução. Mas tu não tens nada que fazer. A tua obrigação é ficares em casa para defenderes a tua mãe.

—   Defender de quê? — e a discussão eternizava-se, com vai­ vém de razões em círculo e a minha mãe dramaticamente já na porta da rua, de braços abertos, e a criada atrás de mim, supli­cando que eu não saísse, a senhora estava tão aflita, eu não me dava conta?

Saí, atirando com a porta que logo se abriu para a minha mãe me lançar maldições lacrimosas, entremeadas de aterrorizados avisos pelos riscos que eu corria; e, do alto do patamar, os clamores seguiram-me até à rua. Na rua, não tinha para onde ir, e fui des­cendo a caminho da Baixa.

(...)

Jorge de Sena, Sinais de fogo

_
adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge
_

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Links

  •  
  • A

    B

    C

    D

    E

    F

    G

    H

    I

    J

    K

    L

    M

    N

    O

    P

    Q

    R

    S

    T

    U

    V

    W

    X

    Y

    Z

    Arquivo

    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    14. 2022
    15. J
    16. F
    17. M
    18. A
    19. M
    20. J
    21. J
    22. A
    23. S
    24. O
    25. N
    26. D
    27. 2021
    28. J
    29. F
    30. M
    31. A
    32. M
    33. J
    34. J
    35. A
    36. S
    37. O
    38. N
    39. D
    40. 2020
    41. J
    42. F
    43. M
    44. A
    45. M
    46. J
    47. J
    48. A
    49. S
    50. O
    51. N
    52. D
    53. 2019
    54. J
    55. F
    56. M
    57. A
    58. M
    59. J
    60. J
    61. A
    62. S
    63. O
    64. N
    65. D
    66. 2018
    67. J
    68. F
    69. M
    70. A
    71. M
    72. J
    73. J
    74. A
    75. S
    76. O
    77. N
    78. D
    79. 2017
    80. J
    81. F
    82. M
    83. A
    84. M
    85. J
    86. J
    87. A
    88. S
    89. O
    90. N
    91. D
    92. 2016
    93. J
    94. F
    95. M
    96. A
    97. M
    98. J
    99. J
    100. A
    101. S
    102. O
    103. N
    104. D
    105. 2015
    106. J
    107. F
    108. M
    109. A
    110. M
    111. J
    112. J
    113. A
    114. S
    115. O
    116. N
    117. D
    118. 2014
    119. J
    120. F
    121. M
    122. A
    123. M
    124. J
    125. J
    126. A
    127. S
    128. O
    129. N
    130. D
    131. 2013
    132. J
    133. F
    134. M
    135. A
    136. M
    137. J
    138. J
    139. A
    140. S
    141. O
    142. N
    143. D
    144. 2012
    145. J
    146. F
    147. M
    148. A
    149. M
    150. J
    151. J
    152. A
    153. S
    154. O
    155. N
    156. D
    157. 2011
    158. J
    159. F
    160. M
    161. A
    162. M
    163. J
    164. J
    165. A
    166. S
    167. O
    168. N
    169. D
    170. 2010
    171. J
    172. F
    173. M
    174. A
    175. M
    176. J
    177. J
    178. A
    179. S
    180. O
    181. N
    182. D
    183. 2009
    184. J
    185. F
    186. M
    187. A
    188. M
    189. J
    190. J
    191. A
    192. S
    193. O
    194. N
    195. D
    196. 2008
    197. J
    198. F
    199. M
    200. A
    201. M
    202. J
    203. J
    204. A
    205. S
    206. O
    207. N
    208. D
    209. 2007
    210. J
    211. F
    212. M
    213. A
    214. M
    215. J
    216. J
    217. A
    218. S
    219. O
    220. N
    221. D