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O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

Ao camarada João...

(...)

Quando entrou no quarto, o seu refúgio, atirou-se para cima da cama, satisfeito. Ainda desta vez, escapara! Apesar de haver perdido a noite anterior, não tinha sono; apenas lhe doíam os pés, com certeza cheios de bolhas rebentadas sob as meias coladas à carne, como de costume. Há três meses naquela tarefa — ir buscar o material de propaganda, distribuí-lo —, ainda não calejara os pés, como os outros camaradas, que aguentavam muitos quilómetros. «É verdade! Há três meses que mergulhara na vida clandestina! Noventa dias de luta, fugido aos esbirros fascistas, partilhando dum lar estranho, embora amigo, ali no quarto estreito que era todo o seu mundo de repouso, de estudo e de sonho, às vezes. Gostava bem daquele quarto de tecto baixo e paredes manchadas pela humidade, com a cama de ferro a um lado, sem colcha; uma mesa tosca, no outro, além da mala; e uma janela que dava para as traseiras dos prédios, mas da qual se via, ao fundo, uma nesga do rio.

De tarde, quando o sol emprestava reflexos de espelho aos vidros sujos ou partidos das traseiras, à hora em que os inquilinos regressavam do trabalho, pejando as ruas da cidade, Abel encostava-se ao peitoril da sua janela e ficava-se a partilhar da vida alegre ou triste dos vizinhos. Os homens, em mangas de camisa, entretinham-se a consertar velhas capoeiras, ou regavam com desvelo uma nespereira raquítica que nunca daria frutos, enquanto as mulheres punham a mesa nas estreitas varandas, se havia bom tempo, e os cachopos saltitavam como pássaros famintos.

Gostavam dele, os cachopos. De longe, mostravam-lhe os tristes brinquedos, atiravam-lhe beijos e tiros imaginários; e ele retribuía com momices que os sufocavam de riso. Também nada o desesperava tanto como ouvir à noite, de repente, entre falas azedas, o choro agudo de uma criança. Assomava então à janela e tentava adivinhar o que se passava para além da escuridão. Certa vez, increpou mesmo uma vizinha que batia na Luisinha, uma garota loira que se parecia com a irmã dele, a mais nova.

— Para que bate assim na menina? Se calhar, ela tem alguma dor, e é por isso que esperneia. Deixe-a.

A voz saiu-lhe áspera, e a mulher ripostou: — Quem é você para me dar leis? Ora o fúfia! Meta-se na sua vida.

Quem era?... A bem dizer: ninguém. E a sua vida era a de todos os proletários do seu país, de todos os famintos de pão e de justiça; era a vida também daquela mulher desesperada, sabia-se lá porquê. Miséria, está bem de ver. «Ah! mas um dia... uma certa manhã de sol radioso... sim, de sol...»

(...)

Extracto do conto «Refúgio perdido», de Soeiro Pereira Gomes, dedicado «Ao camarada João, que inspirou este conto». «João» era o pseudónimo usado na clandestinidade por António Dias Lourenço

-

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

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