A Guerra Civil de Espanha vista por Manuel Tiago (1)
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A um observador desatento ali conduzido, vindo de longe e de olhos vendados subitamente descobertos, a animação da rua, as esplanadas cheias, a gente que circulava, os grupos parados na sombra dos prédios, tudo pareceria habitual num domingo igual a todos os domingos de verão, ali no centro da cidade, não longe da Puerta del Sol.
Igual naquele recanto e naquele momento a um primeiro olhar. Porque logo à observação se revelavam coisas novas e estranhas. Estranho e novo os carros que passavam de quando em quando, cortando o sossego da rua com buzinares e gritaria. Estranho que muitos homens e mulheres ostentassem na cabeça bonés de feitios variados com letras e insígnias. Mais estranho ainda que, ao ouvirem-se, vindos de outras ruas, estalidos lembrando bombas de Santo António, logo os ouvidos se apurassem e os gestos se suspendessem.
Precisamente num momento em que António comentava a tranquilidade do local, soou um desses estalidos e o jovem, lançando uma mirada até ao fundo da rua, viu gente a convergir velozmente para um ponto e estacar em grupo. Logo comentou:
— Se calhar, mais uno que han matado...
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Nas últimas semanas multiplicavam-se os atentados contra militantes e vendedores de jornais da esquerda. Mortos alguns.
Naquela rua, naquele momento, na cidade velha tudo estava mais ou menos tranquilo. Mas Madrid fervia num vulcão.
Sucediam-se manifestações e confrontos. Circulavam carros com velocidades loucas, gritando slogans e abrindo à deslocação do ar enormes bandeiras dos partidos. Aqui e além, estalava o tiroteio e — curioso! — eram raras as fugas e as correrias.
Circulavam boatos de um golpe militar em preparação contra o Governo da República e dizia-se que os fascistas se haviam sublevado no Cuartel de Ia Montaña, agora de portões cerrados, sem contacto com o exterior.
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Pelo que se dizia, os generais, por toda a Espanha, estavam comprometidos no golpe em preparação e controlavam as unidades. O partido mobilizava os militantes e lançava apelos ao povo. Eulália não tinha descanso.
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António foi falando.
As coisas estavam foscas. A reacção não se conformava com a proclamação da República, a vitória da Frente Popular no mês de Fevereiro, a esmagadora maioria republicana e socialista no Parlamento.
— No, no se conforman. Quieren retomar el poder por la violência. Ya lo verás con tus próprios ojos.
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A situação agravou-se rapidamente nos dias seguintes. Aumentaram as provocações e os atentados. António presenciou um deles. Ia pela rua, ouviu dois tiros. Bem perto. Logo no passeio fronteiro um homem cambaleou e caiu. Um magote de gente abeirou--se dele e perdeu-se numa esquina a correr rua fora atrás de quem disparara. António não veio a saber se o apanharam ou não. E no caso de o terem apanhado? Tê-lo-iam levado preso ou, na maré de violência, alguém o teria logo abatido? E se assim tivesse sido? Quem poderia condenar o acto, quando hora a hora os fascistas alvejavam e matavam?
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Ao entardecer, no Paseo de Rosales e na Casa de Campo, o povo madrileno passeava, procurando refrescar-se um pouco do calor escaldante do dia. Passeava em grupos de famílias ou amigos e as horas trágicas, que a cidade vivia, não impediam as moças de enfeitar os cabelos com uma flor ou um laço e as crianças de correr à frente dos pais, rindo e brincando. Entretanto os olhares voltavam-se inquietos para o morro agora sinistro do Cuartel de la Montaña e ao mais ligeiro e suspeito ruído vindo de longe as pessoas paravam a escutar.
Justificava-se a inquietação. Corria que grupos de falangistas armados tinham ido reforçar os oficiais sublevados no Cuartel e que o general Fanjul fora para lá e assumira o comando da sublevação.
Além das informações e boatos que corriam, o povo tinha razões directas para temer o pior. Numa dessas tardes, precisamente no Paseo de Rosales, um carro lançado a grande velocidade ao longo da bela avenida, disparando sem cessar, atropelando as gentes, conseguira escapar-se, deixando um rasto de corpos caídos, gemidos, gritos e sangue.
A crueldade do terrorismo fascista permitia prever o que se passaria no caso de ir por diante o golpe que se anunciava e com evidência se preparava.
O crime no Paseo de Rosales confirmava a razão das inquietações. Assim pensava António. Assim pensava toda a gente.
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Excertos do Capítulo 1 de "A Casa de Eulália"