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O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

E então o senhor padre faz certas proibições e prescreve abstenções

Eis aí, espetada na ponta da nossa pena, mais uma proeza eclesiástica. Os senhores padres prodigalizam-se, e os seus feitos despertam a cada momento, com um rumor irritado, o silêncio da opinião. O País está com o clero, como um homem débil e nervoso que sente umas unhas compridas raspar a cal da parede. Encolhe-se, dobra-se, geme. E termina por mostrar aos senhores eclesiásticos os seus dois poderosos punhos - fechados e impacientes.

(...)

O sermão obsceno é uma particularidade minhota dos senhores missionários. Um de suas senhorias sobe devotamente ao púlpito, e depois das ave-marias murmuradas, olha pausadamente a multidão feminina, apertada e contrita, e com gestos sumptuosos, anuncia que vai tratar da castidade. Tratar da castidade significa contar a que se arriscam, nos futuros infernos de além-vida, os que cometem os ternos pecados do amor. E então o senhor padre, revolvendo o assunto com a sofreguidão com que um avaro revolve o dinheiro, dilata-se, explica, diz as palavras próprias cruamente, descreve, conta anedotas, especializa atitudes, faz certas proibições, marca dias, prescreve abstenções, divide as espécies, aprofunda, exalta-se, clama - e as mulheres coram. E a Correspondência de Portugal contava ultimamente que, num desses derradeiros sermões, o povo rompeu num grande tumulto indignado, e saiu do templo como de um lugar desonesto. Tal é o sermão galante.

(...)

Uma Campanha Alegre (Volume II: Capítulo XXVIII: O sermão político), por Eça de Queirós

Leituras:

Vídeo dos Monty Python:

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                                               

As coisinhas minúsculas e as ideias e as palavras que ficam

(...)

Creio que esta será, a nosso respeito, a impressão geral e definitiva: estamos fazendo muito barulho por causa de muito pouco toucinho...

E pensarmos nós, caro Chagas, que enquanto você está aí ocupado a compor no Atlântico uma formidável equação algébrica, para provar (Deus me perdoe!) não sei que coisas sinistras sobre as Molucas, enquanto eu me estou aqui abandonando a este pairar indiscreto — o grande Darwin publica o seu livro do Movimento das Plantas, o professor Huxley lança o seu grande manifesto da Educação Científica contra a Educação Clássica, Zola dá-nos o seu prodigioso trabalho sobre Gustavo Flaubert, tantos outros trabalham e criam, e o Génio do século forja, com um ruído sublime, na sua bigorna de bronze e ouro, as ideias e as palavras que ficam!

E nós, aqui, a escrevinharmos não sei que coisinhas minúsculas, que, apenas rabeiam um momento sobre o papel, são logo pó imperceptível!... — Você não tem vontade de se atirar a um poço? Eu tenho.

(...)
Eça de Queirós, Brasil e Portugal, Notas Contemporâneas

 

Leituras aconselhadas de Eça:

Todo Eça neste blog: 

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                                               

Injuriar Portugal, deitar peçonha no Alviela e dinamitar a estátua de Camões!

(...) 

Creio que temos conversado bastante. Não terminarei, porém, sem aludir a uma parte do seu artigo que me não parece prudente: é quando você fala de somas recebidas da Gazeta de Notícias, do alto preço por que me vendi para injuriar o país, etc... Eu bem sei que você usou notáveis precauções oratórias: mencionou o boato, e demoliu logo o boato; depois tornou a pôr de pé o boato, para volver a derrubá-lo com furor. Isto é amável; mas enfim você traiu a confidência, que eu lhe fiz. Lembra-se, Chagas? Foi naquela noite de tormenta, na encruzilhada, a poucos passos da capela solitária onde estava dobrando a finados. Eu cheguei rebuçado num manto cor de treva, e punhal à ilharga, deixando pela sombra um tinir de esporas. Um relâmpago fuzilou, e houve um tremolo na orquestra. Até eu lhe disse, lembro-me bem: 

— Meu Chagas, esta situação patética parece mesmo inventada por você, amigo! 

Você respondeu, com engenho: 

— Parece. Eu teria colocado alguma luz eléctrica, batendo as roupagens de uma virgem, cuja alma o mundo não compreende... 

Então eu arrastei-o para o pé do cruzeiro, onde bruxuleava uma lâmpada; e, sentados sobre os degraus de pedra fria, eu comecei a contar-lhe o meu segredo: que a Gazeta de Notícias me dava um milhão (um milhão em ouro) para eu injuriar semanalmente Portugal, deitar peçonha nas nascentes do Alviela e fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões!

Você tremeu, amigo! E murmurou-me ao ouvido estas palavras:

— Prudência, prudência...

Eu repliquei com furor:

— Hei-de beber o sangue a Portugal. Hei-de beber-lho! 

Um trovão retumbou. Sobre um dos braços da cruz piou um mocho. E separámo-nos, na estrada negra, quando dava a meia-noite na torre da catedral.

Você tinha-me jurado segredo. E vem agora publicar tudo no Atlântico! Hei-de assassiná-lo no quinto acto...

(...)

Eça de Queirós, Brasil e Portugal, Notas Contemporâneas

 

Leituras aconselhadas de Eça:

Todo Eça neste blog: 

Mais leituras sobre «terrorismo»: 

Vídeo: 

Uma sugestão para José M. D. Barroso e outros. Da próxima vez que for necessário justificar o massacre de um país digam também que «eles» querem deitar peçonha na barragem de Castelo do Bode, fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões e beber o sangue a Portugal! E não se esqueçam de jurar que viram as provas...

E de quem vos contradisser digam que se vendeu por «alto preço».

                                                                       

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                                               

E o monstro ainda não está no Santo Ofício?

(...)

Começou então o voltarete do senhor marquês. Você não foi admitido à partida do fidalgo: fez apenas um gamão subalterno com um monsenhor da Patriarcal. E pela sala, no entanto, iam sussurrando as conversações.

Discutia-se o processo de uma linda mulher de Alfama que comia crianças em salada: um desembargador aconselhou, para curar quartas, pérolas que tivesse usado a Rainha, moídas em pó: falou-se da escandalosa aparição de Belzebu no convento do Sacramento de Alcântara: e uma dama contou do judeu que dera uma dentada na perna do Senhor dos Passos da Graça!...

Isto arrepiou de horror. E foi então que você, Pinheiro Chagas, disse, depois de se pitadear com gozo:

— Mas há pior! Há pior!...

— Pior que a dentada? Não, ninguém podia acreditar que houvesse pior!

E você, pausado e grave, narrou o meu nefando caso: um herege, um jacobino, um traidor comprado pelo ouro do Brasil, tinha escrito que Portugal fora uma colónia brasileira, e que houvera horrores na nossa dominação da Índia!...

Fez-se na sala um silêncio trágico. As sedas, apavoradas, encolheram-se contra os monsenhores. De comovido, o herdeiro ilustre da casa de Ângeja perdeu a vaza. E os morrões das tochas pareceram mais tristes...

O sr. prior de S. Julião, esgazeando o seu olho de coruja, exclamou a tremer:

— E o monstro ainda não está no Santo Ofício?

— Trago-o de olho, meu reverendo — disse você, severo. — E hei-de ir falar ao Manique...

Ciciou então pelo sarau um suspiro de alívio. A sociedade estava salva! Chagas velava.

Já em baixo tilintavam os guizos das liteiras. Saiu-se. E foi você que, chegando-se ao senhor arcebispo de Tessalonica, e querendo resumir numa palavra todo o mundo de verdades e de ideias que se agitara nesse sarau, o esplendor intelectual que aí brilhava e para que você concorrera — disse respeitosamente ao prelado:

— Portugal é pequenino, mas é um torrãozinho de açúcar.

E sua eminência replicou, depois de arrotar:

— Tem você razão, brigadeiro Chagas.

Brigadeiro, sim! Brigadeiro do tempo da senhora D. Maria I! O último brigadeiro patriota!

(...)
Eça de Queirós, Brasil e Portugal, Notas Contemporâneas

Mais leituras:

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                   

Falar por ordem de uma associação secreta...

    

(...)

A Nação tem sobre os conferentes do Casino esta admirável opinião:
Que eles iam ali falar, não por vontade sua, mas por ordem de uma associação secreta;
Que nenhum acto seu é espontâneo, mas execução de uma ordem da Internacional;
Que nada lhes pertence, em próprio, nem a acção, nem as ideias, nem o nome!
De modo que se um conferente toma à noite um sorvete no Áurea, é porque recebeu pela manhã este sinistro telegrama:
«Comité central: 7 da manhã. - Esta noite tomai sorvete botequim. Conveniente levantamento classes operárias! Em sorvete intransigentes. Viva a comuna! De morango!»
E o Sr. Antero de Quental, de ora em diante, terá de assinar assim o seu nome:
Antero (por assim dizer) de Quental (se ouso exprimir-me assim).
Ó Nação, tu és grande!
(...) 

Uma Campanha Alegre, (Volume I: Capítulo XIII: Máximas e opiniões da Nação, jornal), por Eça de Queirós

Mais leituras:

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                                      

Arrasar o bei de Tunes

    

(...)
Neste momento, eu vejo daqui o leitor honesto, que vai percorrendo estas linhas, parar, pousar o jornal, o seu charuto, e dizer de si para si, ou às senhoras que costuram ao lado:
—Esta é singular! Caso lamentável e raro! O quê! é isto o que ele tinha escrito? Então, o procedimento do Sr. Pinheiro Chagas não me parece regular. Pois o outro cita as palavras de um jornal inglês, ofensivas para Portugal, condena-as como perversas e descorteses, e o autor da Morgadinha de Valflor atribui-lhas a ele e quer-lhe fazer suportar a responsabilidade delas? Se isto são costumes e maneiras literárias, bem faço eu em odiar os literatos! Porque é que o Sr. Pinheiro Chagas não citou o que o outro escrevera? Caso triste e antipático!...
Riamos, meu caro Chagas, riamos aqui a este canto, abraçados um no outro! Rebolemo-nos! Como se vê que aquele honrado homem, que lê o Atlântico, ignora as amarguras, as necessidades formidáveis do jornalismo... A querer que você me citasse! O ingénuo! Se você me citasse, não podia fazer o artigo: e você tinha absolutamente de fazer o seu artigo!...
Eu conheço a situação: é medonha. Na véspera tem-se dito ao director do jornal, apertando-lhe ferventemente a mão, e com a voz a tremer:
—Palavra de honra, menino. Pela minha vida, que tens lá o artigo, além de amanhã, às nove horas. Eu sou incapaz de te comprometer! Juro-to, pela alma de meus filhos... Boa noite. Lá o tens!
Depois, naturalmente, como você sabe, não se pensa mais no artigo. Mas, cruel destino! no dia aprazado, lá toca a campainha, lá chega, fatal, implacável, irrevogável — o moço da tipografia!
É horroroso. Sobretudo quando ele usa botas que rangem! Fica à espera, passeando no pátio ou no corredor: e aquele lento gemer de solas tristes, cadenciado e acusador, alucina!
E cá no nosso gabinete, que pavorosa luta! As cinco tiras de papel ali estão sobre a mesa, lívidas, irónicas, vazias: e é necessário enchê-las todas, de alto a baixo, com coisas extraídas do nosso interior.
É trágico. A parte da carcaça humana a que se recorre primeiro é naturalmente ao crânio, depósito de ideias, impressões, adjectivos e teorias; aperta-se o crânio nas mãos frementes; sacode-se o crânio como uma velha algibeira: — nada sai do crânio. E as botas ao longe, a ranger!
Maldição! Recorre-se então ao peito, asilo dos afectos, dos sentimentos generosos. Talvez de lá saia um canto, um grito, uma apóstrofe. Arranha-se convulsivamente o peito; bate-se desesperadamente no peito como numa porta fechada: — o peito fica mudo como o crânio. E as botas ao longe a ranger!
Inferno! E então os crentes rezam à Virgem Maria; os ateus invocam a morte, a doce aniquilação da matéria; os mais violentos pensam em atrair o moço da tipografia com palavras doces, cortá-lo aos pedaços com uma navalha de barba, esconder os fragmentos na sarjeta doméstica... E as botas, lá no fundo, ironicamente, rangem!
Ah, caro Chagas, é daí que vêm as cãs precoces. Sabe você o que eu fiz numa destas agonias, sentindo o moço da tipografia a tossir na escada, e não podendo arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito, ou do ventre? Agarrei ferozmente da pena e dei, meio louco, uma tunda desesperada no bei de Tunes...
No bei de Tunes? Sim, meu caro Chagas, nesse venerável chefe de Estado, que eu nunca vira, que nunca me fizera mal algum, e que creio mesmo a esse tempo tinha morrido. Não me importei. Em Tunes há sempre um bei: arrasei-o.
Por isso eu compreendo bem que você não me pudesse citar. Que diabo! se me citasse, adeus belas frases! adeus belo patriotismo! adeus belo artigo! — E você ouvia, no corredor, as solas malditas rangendo. Talvez eu, no seu caso, tivesse feito pior ...
O leitor compreende agora as razões de ordem íntima que impediram o meu amigo e colega Pinheiro Chagas de me citar?
(...)

Eça de Queirós, Brasil e Portugal, Notas Contemporâneas

 

Exemplos de como redigir um texto, seguindo o conselho de Eça, quando não se pode «arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito, ou do ventre»: 

  • «Sejam quais forem os agravos em relação a outro País, há regras de convivência internacional que não consentem ofensas gratuitas nem linguagem de caserna nas palavras de um chefe de Estado contra outro Estado. Desta vez o bei de Tunes ultrapassou-se a si mesmo.»

    Adaptado de Despautérios verbais 

  • «Embora inatacável quanto à sua lisura e genuinidade que veio afastar os limites constitucionais à reelegibilidade do bei de Tunes, o referendo constitucional não pode ser aplaudido sob um ponto de vista democrático-republicano.»

    Adaptado de Sem limites  

  • «Há pouca gente com dúvidas, mas também sem certezas. Há na CIA, nas Nações Unidas, gente com dúvidas sobre se as "provas" que os americanos apresentam são mesmo provas a sério, mas são mais dúvidas sobre as "provas" do que sobre o facto do bei de Tunes ter armas de destruição maciça

    Adaptado de O DELITO DE OPINIÃO: AS "MENTIRAS"

  • etc. etc. etc.

 

E depois de uns bons meses de campanha atacando «esse venerável chefe de Estado», lá para Julho e Agosto pode ser começada outra do género: Escândalo! O bei de Tunes vai à Festa do Avante!

                                                                       

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                          

Patriotaças, patriotinheiros, patriotadores, ou patriotarrecas

(...)

O outro patriotismo é diferente: para quem o sente, a pátria não é a multidão que em torno dele palpita na luta da vida moderna — mas a outra pátria, a que há trezentos anos embarcou para a Índia, ao repicar dos sinos, entre as bênçãos dos frades, a ir arrasar aldeias de mouros e traficar em pimenta. Esse, a sua maneira de amar a pátria é tomar a lira e dar-lhe lânguidas serenadas. Esse sobe à tribuna do Parlamento ou ao artigo de fundo, e de lá exclama, com os olhos em alvo e o lábio em luxúria: Oh pátria! Oh filha! Ai querida! Oh pequena! que linda que és! — exactamente como tinha dito na véspera, num restaurante, a uma andaluza barata. Esse, coisa pavorosa! não ama a pátria, namora-a; não lhe dá obras, impinge-lhe odes. Esse, quando a pátria se aproxima dele, com as mãos vazias, pedindo-lhe que coloque nelas o instrumento do seu renascimento — põe lá (ironia magana!) o quê? os louros de Ceuta! Quando o povo lhe pede mais pão e mais justiça, responde-lhe, torcendo o bigode: — Deixa lá... Tu tomaste Cochim.

É esse patriotismo que, quando alguém solta uma verdade, acode de mão à cinta, e com a Monarquia de Frei Bernardo de Brito apertada ao coração, exclamando: — Olá, que injúria é essa à pátria? Pois não sabes tu, ignorante, que nós somos ainda temidos na Índia? E a prova tenho-a neste in-fólio! E querendo garantir a indolência própria, por uma grande inércia pública, esse patriotismo aconselha que se não faça nada, nada se estude, nada se crie — porque o senhor D. Manuel foi outrora um grande rei! E apenas um homem sincero tenta despertar a alma portuguesa e o seu génio do sono em que ela se afunda — esse patriotismo corre, debruça-se, e procura tornar esse sono da pátria mais pesado e mais profundo, cantando-lhe ao ouvido a lenda embaladora da tomada de Arzila!

Este patriotismo, caro Chagas, é o dos brigadeiros vestidos à moderna. E, lamento ter de dizê-lo, parece-se muito com o seu. Os Franceses chamam-lhe chauvinisme: eu chamar-lhe-ia entre nós patriotice. E aos que o cultivam daria os nomes (segundo os seus diferentes temperamentos) de — patriotaças, patriotinheiros, patriotadores, ou patriotarrecas. É o vício fatal que leva às catástrofes. É ele que não deixando fazer nada sob o pretexto que já se fez tudo, imobilizando a nação num pasmo fictício para o passado, que a impede de trabalhar pelo futuro — é ele que dá à Áustria Sadova e à França Sedan. É ele que grita no bulevar: A Berlim! a Berlim! — quando moralmente no bulevar já marcham os Prussianos. Fazendo discursos como Mr. Prudhome, produz finais como Ésquilo. E têm depois os patriotas de vir recompor as ruínas que fizeram os patriotinheiros!
(...)

Eça de Queirós, Brasil e Portugal, Notas Contemporâneas

«...a pátria (...) é a multidão que (...) palpita na luta da vida moderna...»

 

Mais leituras:

«...a ir arrasar aldeias de mouros e traficar...»       

                                                                       

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                                                   

Não, vaidoso! a ciência não pode dar um passo sem ser auxiliada pela fé!

(...)

O Sr. Adolfo Coelho dissera no Casino, ao que parece - que a ciência no seu domínio era independente da fé.

Pois bem! um correspondente eclesiástico da Nação exclama, voltando-se mentalmente para o Sr. Adolfo Coelho: «Como ousa o sábio dizer que a ciência é alguma coisa sem a fé? Não, vaidoso! a ciência não pode dar um passo, um único, sem ser auxiliada pela fé!»

Queremos que esta seja a verdade; mas pensemos então como a vida deve ser cruel e molesta para aquele eclesiástico e para toda a redacção da Nação. Imaginemos um destes homens piedosos, à noite, de chambre, à luz do candeeiro, tomando o rol à criada. Já examinou as parcelas, está a fazer a soma. A cena é solene. Uma luz mística banha as prateleiras. O gato ressona.

— 3 e 7, calcula o clérigo suando.

E imediatamente pára. A ciência bem lhe diz que são 10, mas a ciência não é nada sem o auxilio da fé - e o homem do Senhor corre a consultar Santo Agostinho. Nada porém ensina sobre essa matéria o sublime Doutor. O eclesiástico arregala para a criada um olho pávido:

— Depressa, filha, baixa-me daí a summa de S. Tomás!

E folheia...

E para a casa das dezenas interroga Santo Atanásio, e para a das centenas os Evangelhos comparados!...

Já é de madrugada: a criada dormita; a alvura esbatida do dia faz grandes fios pálidos nas vidraças; as andorinhas gritam na sua glória e na sua alegria; os rebanhos balam; as árvores espreguiçam-se nos braços do vento; Deus, o bom Deus, o Deus Justo, vive na infinita transparência da luz - e o pobre eclesiástico, pálido, sonolento, aturdido, enterrado em in-fólios, folheia o Dicionário de Bergier, Bossuet, Noailles, os concílios de Trento e de Florença, Orígenes, Lactâncio, João Clímaco, Fleury, a Cartilha, o Larraga - para saber se pelas leis da Igreja lhe é permitido afirmar que «11 noves fora, é 2!»

E erra a soma!

(...)

Nação, Nação, boa amiga! não nos queiras mal. Tu és velha, tu és fabulosamente velha, tu és de além da campa! Mas tens o carácter firme. E no meio da leviandade movediça destes partidos liberais - tu tens uma vantagem. Lançaste a âncora no meio do oceano e ficaste parada. Estás apodrecida, cheia de algas, de conchas, de crostas de peixes, mas não andaste no ludíbrio de todas as ondas e na camaradagem de todas as espumas! Tu eras excelente - se fosses viva. Mas és um jornal sombra. És tão viva como Eneias. Tão contemporânea como Telémaco.

Volta, Nação, para ao pé das tuas sombras queridas! E apresenta as nossas saudações carinhosas ao Sr. D. Afonso II, o Gordo!

Uma Campanha Alegre, (Volume I: Capítulo XIII: Máximas e opiniões da Nação, jornal), por Eça de Queirós

Mais leituras:

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                                       

Isto é uma choldra e Darwin é uma besta!...

(...)

E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida «a sério», pratica e útil, as escadas de doentes galgadas à pressa no fogo de uma vasta clínica, as existências que se salvam com um golpe de bisturi, as noites veladas à beira de um leito, entre o terror de uma família, dando grandes batalhas à morte. Como em pequeno o tinham encantado as formas pitorescas das vísceras - atraiam-no agora estes lados militantes e heróicos da ciência.

Matriculou-se realmente com entusiasmo. Para esses longos anos de quieto estudo o avô preparara-lhe uma linda casa em Celas, isolada, com graças de cotage inglês, ornada de persianas verdes, toda fresca entre as árvores. Um amigo de Carlos (um certo João da Ega) pôs-lhe o nome de «Paços de Celas», por causa de luxos então raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquim, panóplias de armas, e um escudeiro de libré.

Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos democratas; quando se soube porém que o dono destes confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava também o país uma choldra ignóbil - os mais rígidos revolucionários começaram a vir aos Paços de Celas tão familiarmente como ao quarto do Trovão, o poeta boémio, o duro socialista, que tinha apenas por mobília uma enxerga e uma Bíblia.

(...)

Carlos ria-se desta ideia do Ega. Três mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenáculo! Lamentável ilusão de um homem de Celorico! O marquês de Souzela tinha tentado, e para uma vez só, uma coisa bem mais simples - um jantar no campo com actrizes. Pois fora o escândalo mais engraçado e mais característico: uma não tinha criada e queria levar consigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia que, aceitando, o brasileiro lhe tirasse a mesada; uma consentiu, mas o amante, quando soube, deu-lhe uma coça. Esta não tinha vestido para ir; aquela pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalizou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos, os pulhas, complicaram medonhamente a questão; uns exigiam ser convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se intrigas, - enfim esta coisa banal, um jantar com actrizes, resultou em o Tarquínio do Ginásio levar uma facada...

- E aqui tens tu Lisboa.

- Enfim, exclamou o Ega, se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?

Desembaraçado da majestade que lhe dava a peliça o antigo Ega reaparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mefistófeles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes frases, numa luta constante com o monóculo, que lhe caía do olho, que ele procurava pelo peito, pelos ombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se também, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambeta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e à uma, malharam sobre o país...

    Mas o relógio ao lado bateu quatro horas; imediatamente Ega saltou sobre a peliça, sepultou-se nela, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, saiu com um arzinho de luxo e de aventura.

- John, disse Carlos que o achava esplêndido e o ia seguindo ao patamar, onde estás tu?

- No Universal, esse santuário!

Carlos abominava o Universal, queria que ele viesse para o Ramalhete.

- Não me convém...

- Em todo o caso vais hoje lá jantar, ver o avô.

- Não posso. Estou comprometido com a besta do Cohen... Mas vou lá amanhã almoçar.

Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monóculo, gritou para cima:

- Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!

- O quê! está pronto? exclamou Carlos, espantado.

- Está esboçado, à brocha larga...

O Livro do Ega! Fora em Coimbra, nos dois últimos anos, que ele começara a falar do seu livro, contando o plano, soltando títulos de capítulos, citando pelos cafés frases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela forma e pela ideia, uma evolução literária. Em Lisboa (onde ele vinha passar as férias e dava ceias no Silva) o livro fora anunciado como um acontecimento. Bacharéis, contemporâneos ou seus condiscípulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas províncias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegara ao Brasil... E sentindo esta ansiosa expectativa em torno do seu livro - o Ega decidira-se enfim a escrevê-lo.

Devia ser uma epopeia em prosa, como ele dizia, dando, sob episódios simbólicos, a história das grandes fases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memórias dum Átomo, e tinha a forma duma autobiografia. Este átomo (o átomo do Ega, como se lhe chamava a sério em Coimbra) aparecia no primeiro capítulo, rolando ainda no vago das Nebulosas primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: enfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda mole do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substância, o átomo do Ega entrava na rude estrutura do Orango, pai da humanidade - e mais tarde vivia nos lábios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heróis, palpitava no coração dos poetas. Gota de água nos lagos de Galileia, ouvira o falar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apóstolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anéis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-no orvalhado, pétala resplandecente de um dormente e lânguido lírio. Fora omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da pena do Ega, e cansado desta jornada através do Ser, repousava - escrevendo as suas Memórias... Tal era este formidável trabalho - de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:

- É uma Bíblia!

In Eça de Queirós, Complete works, Capítulo IV  

(...)

Bêbado! Ele? Ora essa!... Era coisa que não podia, era empiteirar-se. Tinha feito o possível, bebido tudo, até água-ráz. Nunca! Não podia...

- Olha, vou pôr aquela garrafa à boca, tu verás... E fico frio, fico impossível. A discutir filosofia... Queres que te diga o que penso de Darwin? É uma besta... Ora aí tens. Dá cá a garrafa.

Mas Craft recusou-lha; e, um momento Ega ficou oscilando, a olhar para ele, com a face lívida.

(...)

In Eça de Queirós, Complete works ,Capítulo IX

(...)

- Este Tomás! exclamava Ega, pousando-lhe a mão no ombro com carinho. Não há outro, é único! O bom Deus fê-lo num dia de grande verve, e depois quebrou a fôrma.

Ora, histórias! murmurava o poeta radiante. Havia-os tão bons como ele. A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a Bíblia - ou do mesmo macaco como afirmava o Darwin...

- Que, lá essas coisas de evolução, origem das espécies, desenvolvimento da célula, cá para mim... Está claro, o Darwin, o Lamarck, o Spencer, o Claudio Bernard, o Litré, tudo isso, é gente de primeira ordem. Mas acabou-se, irra! Há uns poucos de mil anos que o homem prova sublimemente que tem alma!

- Toma o cafésinho, Tomás! aconselhou o Ega, empurrando-lhe a chávena. Toma o cafésinho!

(...)

In Eça de Queirós, Complete worksCapítulo XVIII

                                                                                     

Mais leituras:

adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge

                                                      

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