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O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

O CASTENDO

TERRAS DE PENALVA ONDE «A LIBERDADE É A COMPREENSÃO DA NECESSIDADE»

Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (VIII)

   Iniciou-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento [19/03] a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.

       

(continuação)

Encontros e retornos de uma mulher


A PRISÃO
             

E em 1959 é presa. Abruptamente. Num táxi cujo motorista tenta salvá-la, em vão, da perseguição da PIDE. «O carro da PIDE vinha lá muito atrás, mas o polícia desceu e correu em direcção ao táxi. Conseguiu chegar a tempo de dizer ao sinaleiro que o “chauffeur” vinha de há muito infringindo as regras de trânsito, e entrou para o meu táxi. Começámos a barafustar, juntou-se gente, houve uma certa confusão, e eu aproveitei para dizer às pessoas quem era, a minha morada e o meu telefone. E pedi-lhes que avisassem a minha família. O “pide” mandou seguir o táxi para a António Maria Cardoso, e não houve outro remédio senão obedecer.

Entrei na António Maria Cardoso às nove horas da noite, e soube posteriormente que às onze horas do mesmo dia, a minha família já estava em Caxias a reclamar para me falar. Isso espantou muito a Polícia, pois, sabendo eles que eu estava na clandestinidade, não percebiam como é que os meus familiares tinham tido tão rapidamente a notícia da minha prisão. Não há dúvida de que alguém tinha muito prontamente transmitido o meu recado

Ficará presa desde Outubro de 1959 até Dezembro de 1969. Será a primeira mulher condenada a 8 anos de prisão maior e medidas de segurança, a mulher com mais anos seguidos numa única prisão.

Dez anos. Longos, longos. Sofridos e intensos. «Na prisão retiraram-me os melhores anos da minha vida. Entrei com 35 anos, saí com 45 anos

É logo nos primeiros dias de prisão, quando incomunicável, que Alda imagina a primeira história infantil, que termina já em liberdade e publicará em 1977: «A viagem numa Gota de Água

Uma escrita que corresponde à recordação do filho e de outras crianças atravessando docemente a sua memória – com a mesma doçura que haviam atravessado a vida.

«Estou convencida que foi das perguntas que meu irmão e meu filho em pequenos me fizeram: Para onde vai o Sol quando vem a noite? Para onde vai a água? O que é o Céu? etc., etc., - que nasceu em mim o desejo de explicar às crianças de forma a que elas compreendessem alguns fenómenos da vida, da terra, da natureza, e me pus a escrever livros para elas

E que corresponde também à necessidade de sobreviver, sem desespero, à incomunicabilidade. «Quando estávamos completamente isoladas, só tínhamos o pente, o prato, o púcaro e pão. Nem lápis, nem papel, nem caneta. Deixaram-me ficar o bâton, que me serviu para fazer na mesa um jogo de xadrez com bolinhas de pão. Cada pessoa tentava enfrentar esta situação de isolamento. Eu entrei no caminho da recriação. Trazia para a minha mente coisas que me afastassem da realidade

Esta fuga ela vai exercitá-la indefinidamente. Nos interrogatórios. Nas horas pesadas de solidão da cela.

«As primeiras 24 horas são as mais difíceis, depois espera-se tudo. Também nos interrogatórios, eu imaginava como seria o Minho socialista ou esta ou outra terra, e desligava do que eles estavam para lá a dizer. Eles apercebiam-se e batiam com a gaveta. Isto foi uma espécie de defesa. Eu ia para outro mundo e imaginava una história para crianças.

Quando saí da incomunicabilidade tinha a história toda escrita na minha cabeça e uma das primeiras coisas que fiz foi passar a papel aquelas ideias, imaginei o desenho. Isto foi o alimento intelectual para este período. Havia também uma preocupação de dar ao inimigo uma imagem de que não estava de rastos, nem estava abatida, de que estava bem. Eu que sou desafinada e não gosto de ouvir a minha voz, cantava o dia todo – “Rosa arredonda a saia” – e o guarda foi dizer ao director que eu devia estar maluca.

Pois foi assim que comecei a imaginar histórias… Escrevi, então, “A viagem numa Gota de Água”. Quanto à outra, “A Viagem numa Flor”, quando saí da cadeia já a tinha mais ou menos escrita, mas só depois é que a concluí

E na prisão, ao longo desses longos dez anos, Alda faz novas amigas, companheiras e dias lentos, como se imóvel o tempo, iludindo com jogos, leitura, cursos, a angústia à espreita, o desespero mesmo.

«Estive com várias amigas durante muitos anos – a Sofia Ferreira, Ivone Dias Lourenço, Maria da Piedade, Aida Paula, Matilde bento, Maria Luísa Costa Dias e tantas outras. Passámos por várias situações. Houve salas com beliches (10 ou 12 pessoas) e outras menores. Dividíamos o dia em duas partes. De manhã levantávamo-nos e tínhamos de correr para tomar o banho quente (com o tempo contado e só uma por casa de banho). A inspecção e a contagem eram às 8H. Recebíamos um jornal diário – o Século – e líamos em colectivo. À volta da mesa fazíamos os nossos trabalhos. Fiz então as camisolas todas do meu filho, saias para a minha mãe, pegas para a cozinha, essas coisas… A Ivone fazia bonecas, caixas e outras coisas interessantes. Elas foram-me ensinando. A visita era às 10H, em geral de meia hora. Depois trocávamos as notícias… que não eram muitas pois a vigilância era muito grande. Almoçávamos. Repousávamos. E retomávamos o trabalho

Um trabalho ainda e sempre solidário…

«Passavam pelas prisões pessoas analfabetas e outras com cursos. E umas ensinavam às outras. Tínhamos cursos de matemática, ciências, português, línguas e história.

Depois tínhamos o recreio. Inicialmente davam-nos apenas 15 minutos, mas lutámos e chegámos a ter 1 hora. Uma hora num terraço por cima da cela, uma cela sem telhado.!...

Na prisão retiraram-me os melhores anos da minha vida

Irreversivelmente. «As pessoas mudavam os caracteres. Aquilo tinha tudo um efeito destruidor. As celas mediam 4m por 4m, contando com a casa de banho

Mas teimando em resistir.

E conseguindo-o.

Conseguindo mesmo a festa, o riso. Ou o seu similar, que importa?

O certo é que resistiam…

«Nas salas grandes fazíamos teatro, caricaturávamo-nos umas às outras, na brincadeira. Tínhamos direito a meia hora de gira-discos. A mim proibiram-me de ouvir uma sinfonia porque era tocada pela orquestra de Leninegrado. Os nossos tempos livres tinham grandes animadoras, cantava-se o fado. E cantigas de infância até!» As mulheres pides não tinham prática. Eram muito ignorantes e tinham uma certa mesquinhez e quando eram más, eram piores que os homens

No desfiar da memória, permanece um olhar magoado. Húmido.

(continua)

                  

Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (VII)

   Iniciou-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento [19/03] a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.

       

(continuação)

Encontros e retornos de uma mulher


A CLANDESTINIDADE
       

É na Faculdade que entra para o Partido Comunista Português. A sua ânsia de transformação da vida não se esgota no estudo nem nas outras actividades de intervenção, Maria Alda sente necessidade de outros horizontes, outras formas de luta. E risco.
Em 1949 entra na clandestinidade e vai trabalhar na redacção do «Avante!».
Acredita, no entanto, que será por pouco tempo.
O seu desejo mais profundo é dedicar-se à investigação, procurando conciliá-la com a participação política. Ardentemente ausculta o passar do tempo e vai lendo obras científicas. Lê muito obras científicas para não se desactualizar.
«Pensei que era uma suspensão na minha carreira, apenas isso. E lia imensas obras da minha especialidade que pedia aos camaradas que me arranjassem. Entretanto, uni-me ao homem que amava, tive um filho. Mas sempre aguardando o momento em que eu retomaria a carreira. Senti sempre e sinto a nostalgia de não seguir a vida da investigação científica
Em 1957 no V Congresso do PCP é eleita membro suplente do Comité Central.

(continua)

                           

Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (VI)

   Iniciou-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento [19/03] a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.

       

(continuação)

Encontros e retornos de uma mulher


OS AMORES
        

Dos amores, dos primeiros e definitivos, nos fala Maria Alda. Do seu eclodir e dos ocasos, quando já resta somente a saudade do que foi e a dor pelo que já não mais será, vazia a emoção, indiferente o corpo, mas ainda presente a ternura, a memória.

Fala com o sentido de humor, meio irónico, meio terno que usa tanto nas palavras, nas frases, no desfilar dos sentimentos.

«O meu primeiro amor foi uma coisa muito complicada e simultaneamente uma coisa inesquecível. O primeiro amor…»

A paixão viria mais tarde «e foi uma paixão à primeira vista. Olhei-o e pensei “Se não tiver mais ninguém, este há-de ser o meu companheiro”…»

Sê-lo-ia. Durante anos. Uma vivência comum de luta, na clandestinidade. Uma ternura imensa. Um amor cheio de sobressaltos, de ausências, de retornos, de insegurança. Um folho.

«Queríamos ter um filho. Era um desejo partilhado. Era difícil economicamente, mas ousámos. Vivíamos privados de muita coisa mas porque, muitas vezes, estabelecíamos residência em zonas piscatórias ou agrícolas, sempre conseguíamos viver menos-mal. Recordo-me que numa das casas que tivemos, todos os dias passava um pescador a dar-nos peixe fresco só porque eu lhe dera umas calças velhas e uma camisola

Um filho. E muitas outras coisas que se não palpam, não têm corpo e deram corpo a tanto sonho, projecto, gestos juntos.

(continua)
                                  

Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (V)

   Iniciou-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento [19/03] a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.

       

(continuação)

Encontros e retornos de uma mulher


A LUTA DE MULHERES
         

Aos 17 anos Maria Alda Nogueira está na faculdade de Ciências. Será uma aluna brilhante. «Num curso quase exclusivamente feminino». Talvez porque implicava trabalho de laboratório e culturalmente as mulheres ligam-se à cozinha.

Algumas alunas desistiram pelo caminho. Só uma seguiu a investigação. A maioria foi para o ensino.

«Embora inicialmente eu seguisse para o ensino com o tempo entusiasmei-me com a investigação.»

Ao mesmo tempo que participa nas lutas académicas, como em 1942/43 contra o aumento das propinas, Maria Alda intensifica a intervenção, a actividade social e política. Envolve-se no combate pela paz espontaneamente.

Era o tempo das aldeias à míngua de cereais, as populações carentes dos géneros que iam para alimento das tropas nazis, as longas bichas de racionamento, as bandeiras negras, ondulantes de revolta nas mãos de mulheres, nas manifestações populares.

«Quando eu estava na Faculdade, ali na Rua da Escola Politécnica, soube que havia perto uma sede da Associação Feminina para a Paz, que enviava géneros par os prisioneiros dos campos de concentração nazis, que lutava pela paz e pelos direitos das mulheres e das crianças, e dirigi-me lá!

Tornei-me activista da Associação, conheci mulheres fantásticas, combativas, inteligentes, a Maria Valentina Trigo de Sousa, a Maria Helena Pulido Valente, a Glafina Lemos, assistente da faculdade, a Maria Letícia, a Francine Benoit, que dirigia o orfeão da Associação, a Manuela Porto

Com estas mulheres insubmissas e através delas, Maria Alda aprenderá muito.

«Aprendi imenso. Tínhamos muita correspondência a nível internacional, recebíamos filmes das embaixadas que fazíamos passar nos cinemas, para arranjar fundos para o socorro dos refugiados da guerra, aos perseguidos pelo fascismo, no estrangeiro e entre nós. Enviámos mesmo algum socorro para o Tarrafal. Simultaneamente a esta actividade funcionavam cursos de alfabetização, cursos de primeiros socorros.

Pela própria composição da Associação, pelas mulheres que a animavam, mas também pelas notícias que nos vinham dos países envolvidos no conflito, onde as mulheres ocupavam todos os postos de trabalho, começou a gerar-se a ideia de que os direitos da mulher estavam entrelaçados com a defesa da democracia, com a própria luta contra o fascismo

É a consciência ganha deste entrelaçar que a leva a escolher a movimentação, a luta feminina.

«Eu queria trabalhar com mulheres e pelas mulheres…»

Em 1945 conhece Maria Lamas e com ela, apoiando-a, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas renasce para um período apaixonante de actividade, de desenvolvimento. «O Conselho estava organizado só aqui em Lisboa e a Maria, tal como muitas de nós, considerava que era necessário alargá-lo a todo o país. Como eu dava aulas mas tinha uma vida bastante disponível, fui destacada para ir ao Algarve e lá consegui organizar várias delegações do Conselho, em Faro, Olhão, Silves, Montachique. Depois fui o Porto… Enfim, enraizámo-nos de facto. Tínhamos delegações na Figueira da Foz, em Coimbra, no Porto, na Marinha, nas Caldas.

Tínhamos várias actividades. Entre elas, os cursos de alfabetização. Recordo-me que em Olhão foi distribuída uma tarjeta pelas fábricas informando que no Conselho se ensinava a ler e a escrever e o largo onde eu morava e funcionava o Conselho, ficou pejado de mulheres, umas 200 ou 300, querendo vir às aulas. Foi um trabalho esgotante este, mas maravilhoso. Aprendi muito com a Maria e também ela aprendeu connosco – foi belo!»

Esta é a época do amadurecimento, em que Maria Alda se excede e se descobre nesse excesso, capaz de muito fazer e agir. Colabora nas “Mãos de Fada”, na revista “Modas & Bordados”, nas “Quatro Estações”, faz conferências sobre a mulher e a ciência. Vive. Apaixonada. Intensamente. E tal será sempre o seu modo de estar.

(continua)

                       

                       

Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (IV)

   Iniciou-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento [19/03] a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.

       

(continuação)

Encontros e retornos de uma mulher


ADOLESCÊNCIA - A AMIZADE
          

Na adolescência, no liceu recebe influências ainda mais determinantes.

«No liceu tive como professora Maria Manuela Palma Carlos, uma mulher admirável que me despertou para as ciências humanas, para a literatura. Conheci também a Irene Alice de Oliveira, professora de História que me alargou a visão de história, do mundo e a Alice Graça, professora de Física, uma mulher republicana que tinha pertencido à Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, uma mulher interessantíssima, muito avançada para a época e a Maria José Estanco, em Desenho. Todas elas me influenciaram. Muito

A adolescência é, também, a descoberta de amizades ainda mais profundas, enraizadas. A descoberta da amizade feminina. Da solidariedade feminina.

«No liceu, conheci a Cecília Simões, de quem me tornei muito amiga. E a Helena Magro. Passámos a andar sempre juntas. Tornou-se a minha amiga do coração. A Helena era quase como irmã, era a minha grande amiga, e acompanhou-me sempre. Ela foi para a clandestinidade primeiro que eu, mas estive a tomar a última refeição com ela. Sim, foi a minha melhor amiga cuja morte na clandestinidade eu senti muito

A amizade, a solidariedade entre mulheres, essa vivência nova, emotiva, plena, diferente, descobre-a Maria Alda neste tempo de juventude, festa, riso, conivência. Marcando-a. Definitivamente.

«Para além das amigas muito chegadas e próximas, eu gostava de viver em grupo também, de me juntar a outras colegas e amigas diferentes.

Juntas representávamos, fazíamos teatro, declamávamos, divertíamo-nos num simples encontro de todas em casa de uma de nós. Parodiávamos as professoras e a cada uma de nós. Até com os Lusíadas fizemos teatro. Assim nos divertíamos, nos conhecíamos, nos amávamos na amizade da alegria nascida.

Talvez isso correspondesse a uma necessidade (pelo menos em mim) de compensar a parte negra da vida vivida no próprio bairro, à nossa volta, por toda a parte sob o fascismo.

Ou talvez seja simplesmente porque como me disse um dia o médico, eu tenho o coração tão dilatado que cabe cá quase todo o mundo.

Aliás, esta necessidade de ter não apenas uma mas várias amigas, cada uma com o seu feitio, com as suas características, com os seus defeitos e boas qualidades, manteve-se e mantém-se uma constante da minha vida.

Ainda hoje eu amo as pessoas com os seus defeitos (e elas amam-me naturalmente com os meus), mas o que quero dizer é que sem esse grande grupo de amigas e amigos que ficam e estão (em pensamento é claro) sempre junto de mim, eu não conseguiria viver, estivesse onde estivesse.

Talvez por não ter tido nunca irmãs, talvez por encontrar nelas, e nas mulheres em geral aliás, muitos pontos de contacto, no sofrimento, na alegria, na expressão duma e doutra, ou talvez por procurar imaginar, enriquecer o conhecimento do humano na prática, neste caso o humano feminino, reflexo da imperecível imagem de minha mãe.

O meu irmão mais novo (Carlos Alberto), que nasceu quando tinha dezoito anos, foi uma nova etapa na minha vida e, nessa data, uma etapa de grande alegria. Quando pequenino eu passeava-o sempre que podia e mais tarde passeávamos, íamos à Tapada da Ajuda ali perto de casa, aos lindos jardins de Lisboa (Estrela e Conde d’Óbidos eram os mais frequentados por mais perto, mas também outros)

(continua)

                  

Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (III)

   Iniciou-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento [19/03] a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.

       

(continuação)

Encontros e retornos de uma mulher


O DESPERTAR
            
Mesmo aqui ao lado o povo lutando. Ah! Quanta esperança de mudança nascia de terras de Espanha, quanta certeza no Movimento das Brigadas Internacionais. Nunca houve um exército assim. Poetas, escritores, músicos, de todas as artes eram estes guerreiros de uma causa só, estes homens em guerra pela paz, a democracia, a liberdade. Nunca houve um exército assim e nunca as canções de uma só língua se cantaram em tantas línguas. Nunca à mesma hora em tão diversos e longínquos sítios, se aguardava com tamanha ansiedade as novas da frente.
«Nós começámos todos a ouvir clandestinamente as emissões da Rádio Republicana. O meu pai torcia pelos republicanos, contra os franquistas. Eu, entretanto, entrara para o liceu, conhecera novas amigas, iniciei-me na luta. Por essa altura comecei a trabalhar no Socorro Vermelho Internacional recolhendo géneros e roupas para enviar aos nossos amigos espanhóis. Sentíamos um entusiasmo tremendo. Pensávamos que derrotado o fascismo e Espanha, também em Portugal ele não perduraria…»
Sim, nunca houve uma esperança assim partilhada. Nunca as mulheres sonharam tanto o reencontro vitorioso com o amado, a euforia dos corpos reencontrados no ardor da alegria conquistada.
Nunca.
E nunca houve um poeta assim.
                  
Espanha!

Não faças caso de lamentos
Nem de falsas emoções,
as melhores devoções
são os grandes pensamentos.
E ainda que por momentos
o mal que te feriu se agrave,
ergue-te indómita e brava,
em vez de caíres cobarde,
estala em pedaços e arde,
pois antes morta que escrava.

Por isso nunca nenhuma derrota foi tão amarga. Nem tão chorada também.
(continua) 
                

Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (II)

   Iniciou-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento [19/03] a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.

       

(continuação)

Encontros e retornos de uma mulher


A ESCOLA
            
Na Escola da Tapada, Maria Alda tece as primeiras amizades, a primeira cumplicidade feminina. Aí, entre as carteiras de madeira e o pátio sombreado de verde, faz uma amiga que o será para toda a vida: Adélia Abrantes.
Através da professora, recebe a passagem de algum saber e, fundamentalmente, a aprendizagem de um outro modo de olhar o mundo. Em desafio. A avó completa esta influência. Mais acentuadamente.
«Conheci a minha professora – Lininha – na 2ª classe. Era uma mulher toda despachada, com quem conversava muito, era uma mulher culta, muito aberta, terna, que me ajudou a abrir certos horizontes. No mesmo sentido me influenciou a minha avó.
A minha avó tinha ficado só, o meu avô partira para África e não dera mais sinal de si, e ela ficou com 3 filhas, criando-as a pulso, a trabalho, a cansaço. Era uma mulher com uma grande noção da sua independência, nunca aceitou donativos da filha ou dos genros e quando ia lá a casa, levava sempre a sua galinha. Era uma mulher forte a minha avó
Outras influências se inscreveriam nesse tempo sensível de infância, nessa flor do tempo.
«Também outras as próprias pessoas do bairro me conheciam e com quem me dei, tiveram uma grande influência na minha vida, particularmente um vizinho meu, o coronel Almeida, que foi depois comandante do Quartel da Trafaria. Era um homem formado em Física. Tinha uma certa frustração de não ter seguido a carreira universitária. Era um homem de grande cultura, amante de música, tocava violino e ensinou-me a ouvir óperas, ajudou-me na minha cultura geral e influenciou decisivamente na minha opção de curso, até na medida em que me deu explicações de físico-química e me abriu o universo das ciências. Ele e a mulher não tinham filhos e talvez por isso se me dedicassem tanto!»
Politicamente Maria Alda começa por ser influenciada pelo pai. Operário especializado, o pai de Maria Alda parte em estadia breve para África e no regresso investe numa pequena indústria que florescerá durante a guerra. Bem sucedido na vida, industrial em pujança, o pai de Maria Alda conserva, no entanto, um sentimento antifascista muito vivo.
«O meu pai era profundamente antifascista. O meu pai discutia muito comigo, mais do que com o meu irmão. Praticamente à mesa éramos só nós dois que conversávamos política…”politiquice” como a minha mãe dizia a sorrir. Mas para o meu despertar político confluíram uma série de factores. Não houve assim uma coisa determinante. Mas talvez o fundamental fosse a Guerra de Espanha de 1936 a 39…»
(continua) 
                

Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (I)

   Inicia-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.

                         

Encontros e retornos de uma mulher

A 19 de Março de 1923, nascia em Alcântara, Alda Nogueira.
«Nasci mesmo no prédio onde é hoje a pastelaria "O Galão”. Era um prédio antigo. De azulejos. Não foi indiferente às opções da minha vida o ter nascido no Bairro de Alcântara… O Bairro de Alcântara era então um bairro cheio de fábricas, de trabalhadores e muitos dos seus filhos eram meus colegas de escola

DA JANELA
             
Também filha de operários, a mãe, costureira de alfaiate e o pai, serralheiro mecânico, Alda viveria os primeiros anos de vida imersa neste murmúrio, neste roçar de gente, fala, máquinas, odores dos bairros operários.
Olhando a vida, de sua janela. Um pouco de mar, muito céu e o fervilhar do Largo. A manhã nascia, o cheiro quente da padaria colando-se doce, guloso, às faces.
E de sua janela, Alda brincava mirando a vida. Brincava com o irmão mais novo aos carros eléctricos – e as grades de ferro eram os varões onde se apoiava, passageira de viagens lúdicas, inesquecíveis viagens, sol na face dos vidros acendendo fulgores, e cá em baixo o Largo do Calvário. Sempre o largo, a gente, o fumo, as falas, os pregões, os cheiros que ainda perduram na memória, até sempre este odor de infância, do tempo ganho e perdido, esse tempo de tantas outras dimensões ignorado por Alda, menina na varanda, sonhando idas por outros caminhos, outras fronteiras, ou no interior da casa, jogando com o irmão às lojinhas e outros jogos indiferenciados, sem a marca do “é prá menina, é pró menino”.
«Tanto ele brincava com bonecas, como eu com coisas de rapazes. Partilhávamos muito os jogos, as brincadeiras. E o desporto sobretudo. Sempre gostei muito do desporto. Nós comprávamos aqueles livrinhos “Como aprender a nadar”, Como jogar boxe”, “Como saber judo” e, em conjunto, fazíamos essa aprendizagem. Pratiquei natação, voleibol que aprendi com o professor Quintanilha e outros desportos
E nos raros tempos de quietude Maria Alda lia.
«A minha grande leitura naquela altura em miúda era o Pim Pam Pum. Adorava!»
Nessas dimensões ignoradas, nessa outra fronteira da vida para além do Largo, mas na qual o Largo se envolvia com a sua força operária, a sua revolta popular, mastigada com raiva nas tabernas e nas fábricas e nas esquinas, sussurravam-se descontentamentos, angústias, resistências.
Maria Alda nascera no poente da República, época de muitas promessas, muitas esperanças, desiguais erros, desunidades fatais.
Num poente onde as mulheres se movimentavam como se fosse ainda início do dia da liberdade. À data em que Maria Alda começava a andar, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas fundado em 1914, sob a direcção de Adelaide Cabete, agitava a problemática feminina, lançava campanhas, discussões, polémicas. Publicava a revista "Alma Feminina”, tribuna de informação, divulgação e lutas feministas, ousava coisas antes não ousadas pelas mulheres. E organizava o I Congresso Feminista e de Educação em 1924 e em 1928 o segundo, ambos com pleno sucesso.
Mas este Congresso de 1928 era já objecto de ataques ferozes, anunciando a opressão próxima. Porque entretanto fora o 28 de Maio de 1926, o fascismo triunfante, instalando-se, permanecendo, ferindo o país, o povo, o largo, as suas gentes, a vida de Maria Alda. Despertando revoltas, greves, lutas, resistências. E muito silenciamento, muita repressão. E Maria Alda de sua janela, vendo ainda muito céu, um pouco de mar, começou a presenciar coisas diferentes, coisas que não esquecem:
«Presenciei a revolta dos Marinheiros em Setembro de 1936 do alto da minha janela. Presenciei aquela canhoada toda, com o Largo do Calvário cheio de legionários a dispararem sobre a multidão
E outros sons, além das falas da gente do Largo, a estremeceriam em sua janela:
«A esquadra era mesmo em frente de minha casa e para lá iam presos de lutas laborais e eu ouvia muitas vezes, os seus gritos, a serem espancados, a serem torturados.»
E outras notícias de coisas passadas nas proximidades do Largo, a punham perplexa, ansiosa…
«Uma notícia que teve muita importância para mim e me tocou imenso foi quando soube que, na altura das greves na Construção Naval, da CUF que era mesmo ali em Alcântara, as mulheres dos grevistas se deitaram nas linhas dos eléctricos ali na Rocha, chamada do Aterro, na Av. 24 de Julho, para não deixar passar os “amarelos” que eram os da Carris que não queriam aderir à Greve. Já era rapariga e participei na recolha de donativos para os filhos dos grevistas.
Tudo isto eclodia em cima da minha casa, quase nas minhas paredes

(continua)

Maria Alda Nogueira

   

                        

As suas cinzas foram lançadas à terra, como era seu desejo expresso, a 8 de Março de 1998.

                   

19 de Março de 1923 - 5 de Março de 1998

             

QUERO-TE

             

Ao nosso amor
Com o bom e o mau que tem
Quero-lhe bem

À nossa flor
Filha de grito mudo
Quero-lhe tudo

A ti meu bem
Trazido com os vendavais
Quero-te mais

Maria Alda Nogueira

Prisão de Caxias, 24 de Maio de 1961

                                

Homenagem à mãe que, apenas saída de Caxias, depois de 9 anos e dois meses seguidos de prisão, me «obrigou» a ler um enorme livro sobre cibernética. «Isto é o futuro para toda a humanidade», explicou-me em Dezembro de 1968, tinha eu 15 anos. Ainda pouca gente falava de informática em Portugal...

Homenagem à mãe que me demonstrou que «a política é uma ciência». E que, é bom recordá-lo neste Dia Internacional da Mulher, a igualdade dos sexos só é atingida com a plena emancipação da mulher e do homem, com o socialismo e o comunismo.

                        

Um obrigado às palavras amigas do blog Cravo de Abril e do jornal «Avante!»  

                                    

   Nota Gabinete de Imprensa    Exposição    Folheto 
                                                                                    

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