Maria Alda Nogueira: Uma mulher, Uma vida, Uma história de amor (VIII)
Iniciou-se no dia do 85º aniversário do seu nascimento [19/03] a transcrição integral de um texto da autoria de Helena Neves, com edição do Movimento Democrático das Mulheres (MDM) sobre Maria Alda Nogueira. Foi publicado em 1987 por ocasião da entrega pelo MDM da Distinção de Honra, numa homenagem a uma vida dedicada à defesa da igualdade, da justiça social e da paz.
(continuação)
Encontros e retornos de uma mulher
A PRISÃO
E em 1959 é presa. Abruptamente. Num táxi cujo motorista tenta salvá-la, em vão, da perseguição da PIDE. «O carro da PIDE vinha lá muito atrás, mas o polícia desceu e correu em direcção ao táxi. Conseguiu chegar a tempo de dizer ao sinaleiro que o “chauffeur” vinha de há muito infringindo as regras de trânsito, e entrou para o meu táxi. Começámos a barafustar, juntou-se gente, houve uma certa confusão, e eu aproveitei para dizer às pessoas quem era, a minha morada e o meu telefone. E pedi-lhes que avisassem a minha família. O “pide” mandou seguir o táxi para a António Maria Cardoso, e não houve outro remédio senão obedecer.
Entrei na António Maria Cardoso às nove horas da noite, e soube posteriormente que às onze horas do mesmo dia, a minha família já estava em Caxias a reclamar para me falar. Isso espantou muito a Polícia, pois, sabendo eles que eu estava na clandestinidade, não percebiam como é que os meus familiares tinham tido tão rapidamente a notícia da minha prisão. Não há dúvida de que alguém tinha muito prontamente transmitido o meu recado.»
Ficará presa desde Outubro de 1959 até Dezembro de 1969. Será a primeira mulher condenada a 8 anos de prisão maior e medidas de segurança, a mulher com mais anos seguidos numa única prisão.
Dez anos. Longos, longos. Sofridos e intensos. «Na prisão retiraram-me os melhores anos da minha vida. Entrei com 35 anos, saí com 45 anos.»
É logo nos primeiros dias de prisão, quando incomunicável, que Alda imagina a primeira história infantil, que termina já em liberdade e publicará em 1977: «A viagem numa Gota de Água.»
Uma escrita que corresponde à recordação do filho e de outras crianças atravessando docemente a sua memória – com a mesma doçura que haviam atravessado a vida.
«Estou convencida que foi das perguntas que meu irmão e meu filho em pequenos me fizeram: Para onde vai o Sol quando vem a noite? Para onde vai a água? O que é o Céu? etc., etc., - que nasceu em mim o desejo de explicar às crianças de forma a que elas compreendessem alguns fenómenos da vida, da terra, da natureza, e me pus a escrever livros para elas.»
E que corresponde também à necessidade de sobreviver, sem desespero, à incomunicabilidade. «Quando estávamos completamente isoladas, só tínhamos o pente, o prato, o púcaro e pão. Nem lápis, nem papel, nem caneta. Deixaram-me ficar o bâton, que me serviu para fazer na mesa um jogo de xadrez com bolinhas de pão. Cada pessoa tentava enfrentar esta situação de isolamento. Eu entrei no caminho da recriação. Trazia para a minha mente coisas que me afastassem da realidade.»
Esta fuga ela vai exercitá-la indefinidamente. Nos interrogatórios. Nas horas pesadas de solidão da cela.
«As primeiras 24 horas são as mais difíceis, depois espera-se tudo. Também nos interrogatórios, eu imaginava como seria o Minho socialista ou esta ou outra terra, e desligava do que eles estavam para lá a dizer. Eles apercebiam-se e batiam com a gaveta. Isto foi uma espécie de defesa. Eu ia para outro mundo e imaginava una história para crianças.
Quando saí da incomunicabilidade tinha a história toda escrita na minha cabeça e uma das primeiras coisas que fiz foi passar a papel aquelas ideias, imaginei o desenho. Isto foi o alimento intelectual para este período. Havia também uma preocupação de dar ao inimigo uma imagem de que não estava de rastos, nem estava abatida, de que estava bem. Eu que sou desafinada e não gosto de ouvir a minha voz, cantava o dia todo – “Rosa arredonda a saia” – e o guarda foi dizer ao director que eu devia estar maluca.
Pois foi assim que comecei a imaginar histórias… Escrevi, então, “A viagem numa Gota de Água”. Quanto à outra, “A Viagem numa Flor”, quando saí da cadeia já a tinha mais ou menos escrita, mas só depois é que a concluí.»
E na prisão, ao longo desses longos dez anos, Alda faz novas amigas, companheiras e dias lentos, como se imóvel o tempo, iludindo com jogos, leitura, cursos, a angústia à espreita, o desespero mesmo.
«Estive com várias amigas durante muitos anos – a Sofia Ferreira, Ivone Dias Lourenço, Maria da Piedade, Aida Paula, Matilde bento, Maria Luísa Costa Dias e tantas outras. Passámos por várias situações. Houve salas com beliches (10 ou 12 pessoas) e outras menores. Dividíamos o dia em duas partes. De manhã levantávamo-nos e tínhamos de correr para tomar o banho quente (com o tempo contado e só uma por casa de banho). A inspecção e a contagem eram às 8H. Recebíamos um jornal diário – o Século – e líamos em colectivo. À volta da mesa fazíamos os nossos trabalhos. Fiz então as camisolas todas do meu filho, saias para a minha mãe, pegas para a cozinha, essas coisas… A Ivone fazia bonecas, caixas e outras coisas interessantes. Elas foram-me ensinando. A visita era às 10H, em geral de meia hora. Depois trocávamos as notícias… que não eram muitas pois a vigilância era muito grande. Almoçávamos. Repousávamos. E retomávamos o trabalho.»
Um trabalho ainda e sempre solidário…
«Passavam pelas prisões pessoas analfabetas e outras com cursos. E umas ensinavam às outras. Tínhamos cursos de matemática, ciências, português, línguas e história.
Depois tínhamos o recreio. Inicialmente davam-nos apenas 15 minutos, mas lutámos e chegámos a ter 1 hora. Uma hora num terraço por cima da cela, uma cela sem telhado.!...
Na prisão retiraram-me os melhores anos da minha vida.»
Irreversivelmente. «As pessoas mudavam os caracteres. Aquilo tinha tudo um efeito destruidor. As celas mediam 4m por 4m, contando com a casa de banho.»
Mas teimando em resistir.
E conseguindo-o.
Conseguindo mesmo a festa, o riso. Ou o seu similar, que importa?
O certo é que resistiam…
«Nas salas grandes fazíamos teatro, caricaturávamo-nos umas às outras, na brincadeira. Tínhamos direito a meia hora de gira-discos. A mim proibiram-me de ouvir uma sinfonia porque era tocada pela orquestra de Leninegrado. Os nossos tempos livres tinham grandes animadoras, cantava-se o fado. E cantigas de infância até!» As mulheres pides não tinham prática. Eram muito ignorantes e tinham uma certa mesquinhez e quando eram más, eram piores que os homens.»
No desfiar da memória, permanece um olhar magoado. Húmido.
(continua)