Nunca se falou tanto em terrorismo, nunca se proferiram tantas declarações definitivas sobre os esforços necessários para a extinção do fenómeno, nunca se teorizou e debateu tanto sobre a matéria e, no entanto, o papel do terrorismo na sociedade jamais foi tão influente – e fatal – como nos 15 anos que o século XXI leva de existência.
Uma das mais nefastas atitudes perante o terrorismo é a deturpação ostensiva do conceito, a sua redução a determinadas e particulares formas de violência, prática que dissimula e pretende absolver expressões organizadas e poderosas de terror quase sempre apresentadas como actos legítimos de anti terrorismo ou de «guerra contra o terrorismo».
Isto é, resumir as notícias e o debate sobre o terrorismo, como actualmente se faz, ao terrorismo dito de inspiração «islâmica» ou assimilável, é uma manobra manipuladora que pretende fazer esquecer, ostensivamente, o terrorismo de Estado ou expressões de violência que florescem à sombra deste, as quais tanto podem ser os clássicos esquadrões da morte como o patrocínio clandestino de grupos e organizações com vocação para derrubar governos e organizar golpes de Estado. Ou, como já deixou de ser segredo, organizar, treinar, armar e financiar grupos terroristas ditos «islâmicos», os quais, em boa verdade, não passam de exércitos privados de mercenários.
Odrama dos refugiados na Europa tem sido amplamente mediatizado para desviar a atenção da crise do processo de integração capitalista europeu, retocar a imagem de uma Alemanha profundamente desacreditada pelas brutais imposições à Grécia, justificar apelos a «uma autoridade forte» que reforce ainda mais o carácter supranacional da UE e, sobretudo, esconder as verdadeiras causas e responsáveis pela onda de fugitivos da guerra e da morte. E nos últimos dias, com a entrada em cena dos EUA (que se propõem receber dez mil refugiados sírios) tornou-se evidente que o imperialismo procura instrumentalizar a «crise dos refugiados» para dar um rosto «humanitário» à sua intervenção na Síria e, a coberto do «combate» ao «Estado Islâmico», intensificar as operações militares contra o regime presidido por Bashar al-Assad. A França de Hollande, certamente saudosa dos tempos em que a partilha imperialista dos despojos do Império Otomano lhe atribuiu um mandato colonial sobre a Síria e o Líbano, tomou a dianteira e anunciou bombardeamentos em território sírio. Agora é Obama que, obcecado pelo derrube do governo sírio, vem ameaçar a Federação Russa, que mantém com a Síria uma aliança de muitas décadas, pela sua assistência militar a Damasco.
Ao mesmo tempo que é necessário exigir solução humanitária e política urgente para a dramática situação dos refugiados, não pode permitir-se qualquer distracção quanto à estratégia agressiva do imperialismo. É hoje evidente que o misterioso «Estado Islâmico» foi uma criação do imperialismo norte-americano e da reacção árabe para justificar a política de ingerência, desestabilização e guerra em toda a Região e, em particular, para liquidar a resistência da Síria ao dictat dos EUA e ao seu projecto do «Grande Médio Oriente». Depois de quatro anos de aberta ingerência e brutal agressão das grandes potências da NATO; de sucessivos fracassos e derrotas de «alianças» mercenárias forjadas, armadas e comandadas no exterior; de milhares e milhares de mortes e imensas destruições; de mais de seis milhões de deslocados internos e quatro milhões de refugiados (a esmagadora maioria nos países limítrofes: Turquia, Líbano e Jordânia), a Síria continua a resistir, e isso é inaceitável para o imperialismo. O relançamento da campanha contra este país, procurando responsabilizar o seu governo pela crise dos refugiados e levantando de novo a acusação de utilização de armas químicas e de outros crimes de guerra, não é prenúncio de nada de bom. É necessário desmascarar a tentativa de transformar em bode expiatório a própria vítima.
Éoportuno lembrar que a Síria foi durante muito tempo o mais estável país do Médio Oriente; que esteve sempre na primeira linha de combate ao expansionismo sionista que desde 1976 ocupa ilegalmente os seus Montes Golã; que desde a sua revolução anti-colonial praticou uma política externa anti-imperialista e de cooperação com o campo socialista; com governos dirigidos pelo partido Baas assentes em alianças em que participam comunistas e outros partidos nacionalistas e progressistas; que tem sido refúgio e rectaguarda de palestinianos e outras forças ilegalizadas nos seus países. Num quadro de completa independência e respeito pelas diferenças, o PCP tem mantido relações como o partido Baas no poder e o próprio camarada Álvaro Cunhal visitou este país. Com os seus problemas e contradições a Síria tem desempenhado um papel globalmente progressista no plano árabe e no mundo. É esta realidade que o imperialismo quer a todo o custo abater enquanto na Turquia, com a cumplicidade do «mundo ocidental e cristão» está em marcha uma feroz escalada de repressão do povo curdo e a ditadura saudita bombardeia a capital do Iémen.
Não se trata de 'teoria da conspiração', mas de conspiração confirmada e documentada. O grupo norte-americano Judicial Watch publicou em Maio documentos oficiais dos ministérios dos Estrangeiros e Defesa dos EUA, obtidos após processo judicial. O jornalista Seumas Milne (Guardian, 3.6.15) refere «um relatório secreto dos serviços de informações dos EUA, escrito em Agosto de 2012, que estranhamente prevê – e na prática saúda – a possibilidade dum 'principado Salafita' no Leste da Síria e dum Estado Islâmico controlado pela al-Qaeda na Síria e Iraque. Em flagrante contraste com as alegações ocidentais de então, o documento da Defense Intelligence Agency identifica a al-Qaeda no Iraque (que se viria a tornar no ISIS) e os seus correligionários Salafitas como 'as principais forças que dinamizam a insurreição na Síria' e declara que 'os países ocidentais, os estados do Golfo e a Turquia' apoiam os esforços da oposição para controlar o Leste da Síria». Diz o relatório: «a possibilidade de estabelecimento dum principado Salafita declarado ou não» é «precisamente aquilo que as potências que apoiam a oposição desejam, de forma a isolar o regime sírio».
Se dúvidas houvesse sobre as origens do ISIL, o vice-presidente dos EUA Joseph Biden, trouxe uma confissão de peso ao falar na Universidade de Harvard a 2 de Outubro: «Os nossos aliados da região têm sido o nosso maior problema na Síria. Os turcos [… e] os sauditas, os dos Emirados, etc. [...] Estavam tão decididos a abater Assad […] que despejaram centenas de milhões de dólares e dezenas de toneladas de armas nas mãos de quem quer que lutasse contra Assad – só que as pessoas que estavam a ser abastecidas eram a [Frente] al-Nusra, e a Al-Qaeda, e os elementos extremistas do jihadismo que vinham de todas as partes do mundo. Pensam que estou a exagerar? Olhem bem. Onde foi tudo isto parar? [...] esta organização chamada ISIL, que era a Al-Qaeda no Iraque, quando foi expulsa do Iraque encontrou espaço e território aberto na Síria oriental […]. E nós não conseguimos convencer os nossos aliados a parar de os abastecer» (Washington Post, 6.10.14). A confissão de Biden, que o Washington Post considera «surpreendente», não pelo seu conteúdo, mas por «ter sido expressa em público», é duma falsa inocência.
Mas a força da opinião pública e da acção de massas é determinante. E como na guerra a verdade é a primeira a morrer, soterrada por poderosas campanhas mediáticas, é preciso não esquecer – sejam quais forem as voltas e reviravoltas do processo visando desarmar, diabolizar e derrubar o regime sírio – algumas verdades elementares.
1.ª – O objectivo do imperialismo é o controle da região, das suas riquezas em petróleo e gás natural e respectivas vias de transporte.
2.ª – Para isso é necessário desestabilizar e recolonizar os países que façam frente ao imperialismo. A Turquia, que dominou a Síria durante séculos, alimenta projectos expansionistas e está na primeira linha da agressão . E a vergonhosa aliança do governo de Hollande com os EUA não é separável do facto de a França, que tomou o lugar do Império Otomano depois da Primeira Guerra Mundial, ter acabado derrotada por poderosos levantamentos populares que, em 1946, fizeram da Síria o primeiro país árabe independente.
3.ª – De Israel e da sua criminosa política sionista pouco se tem falado. Trata-se, porém, da ponta de lança do imperialismo no Médio Oriente. Israel é um país armado até aos dentes, o único da região que detém a arma atómica e ameaça utilizá-la, não ractificou a Convenção sobre armas químicas, ameaça permanentemente o Líbano, a Síria e o Irão, ocupa ilegalmente a terra da Palestina e inferniza diáriamente a vida do povo palestiniano.
4.ª – Quem ameaça quem? A principal ameaça vem de Israel e dos lacaios do imperialismo como a Arábia Saudita (cujos massacres no Barhein e no Iémen continuam silenciados) e o Qatar. No que respeita à Síria, não deve esquecer-se que uma parte do seu território, os montes Golã, estão há longos anos sob ocupação de Israel e que bombas israelitas foram lançadas por várias vezes sobre alvos em território sírio, como ainda há pouco sucedeu ao aeroporto de Damasco.
5.ª – O «combate ao terrorismo» é cortina de fumo cada vez mais esfarrapada. Na Síria, o imperialismo está a trabalhar abertamente com «jihadistas» e bandos ligados à Al-Qaeda, o que só pode surpreender quem tenha esquecido que este foi um monstro criado pela CIA para as operações anticomunistas dos EUA.
6.ª – A estratégia de tensão e de guerra é indispensável ao complexo militar-industrial e ao comércio de armamento, esse terrível tumor maligno gerado pelo próprio desenvolvimento do capitalismo.
Veteranos profissionais dos serviços de informações dos EUA, da CIA e militares, enviaram um memorando a Obama sobre a Síria. Eis alguns trechos:
«Lamentamos informar-vos que alguns de nossos colegas dizem-nos, categoricamente que contrariamente às afirmações da vossa administração, as informações mais fiáveis, mostram que Bachar-al-Assad não foi responsável pelo incidente químico que matou e feriu civis sírios em 21 de agosto, e que os serviços de informações britânicos também o sabem.»
O «memorando» refere também que após o discurso de Colin Powell em 2003 na ONU, os veteranos tinham informado G.W.Bush, da natureza fraudulenta da informação.
«Escolhemos dar ao presidente Bush o benefício da dúvida, pensando que tinha sido induzido em erro ou, pelo menos, mal aconselhado». «A natureza fraudulenta do discurso de Powell era uma evidência (…) exortámos vivamente o vosso predecessor a alargar o debate para além do circulo de conselheiros claramente voltados para uma guerra para a qual não víamos nenhuma razão imperiosa (…) oferecemos-vos o mesmo conselho hoje.»
«As nossas fontes (…) insistem que o incidente não resultou de um ataque levado a cabo pelo exército sírio empregando armas químicas do seu arsenal. É este o facto mais saliente segundo agentes da CIA trabalhando na questão síria. Eles dizem-nos que o diretor da CIA John Brennan está a cometer uma fraude do tipo que precedeu a guerra no Iraque, sobre os membros do Congresso, os medias, o público, e mesmo sobre vós.»
«Há um grande número de provas provenientes de numerosas fontes no Médio Oriente – principalmente ligadas à oposição síria e seus partidários – oferecendo uma forte prova circunstancial que o incidente químico de 21 de agosto foi uma provocação planeada antecipadamente pela oposição síria e seus apoios turcos e sauditas.O objetivo era criar um género de incidente que fizesse os EUA entrarem na guerra.»
O «memorando» refere relatos sobre caixas contendo agentes químicos introduzidos nos arredores de Damasco onde foram abertas, não existindo nenhuma prova fiável que qualquer unidade especializada em armas químicas do exército sírio tenha operado na região ou que tenha sido disparado um míssil portador dessas armas.
É ainda relatado que se realizaram reuniões em que os comandantes da oposição informaram de «uma escalada iminente nos combates graças a um incidente que mudaria a guerra e que por sua vez levaria a bombardeamentos americanos na Síria que começariam dentro de alguns dias». Neste sentido foi feita ampla distribuição de armas sendo ordenado aos chefes militares para rapidamente explorarem os bombardeamentos americanos, marchar sobre Damasco e derrubar o governo.
Assinam a carta 11 membros em representação do «Steering Group, Veteran Intelligence Professionals for Sanity»