Carta Aberta ao Senhor Presidente da República
A atribuição da Ordem da Liberdade a Volodymyr Olexandrovytch Zelensky
Exmº Senhor Presidente da República Portuguesa Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa
Chamo-me António Nogueira de Matos Vilarigues, cidadão com intervenção cívica desde 1969, alguém que aos 17 anos, em Junho de 1971, passou à clandestinidade.
Sou filho do militante do Partido Comunista Português (PCP), Sérgio de Matos Vilarigues, que esteve preso 7 anos (dos 19 aos 26) no Aljube, em Peniche, em Angra e no campo de concentração do Tarrafal para onde foi enviado já com a pena terminada. Que foi libertado por «amnistia» em 1940, quatro anos depois de ter terminado a pena. Que passou 32 anos na clandestinidade no interior do país, o que constitui um recorde europeu. Consultado pelo Presidente da República Jorge Sampaio, recusou receber a Ordem da Liberdade. [i]
Sou filho da militante comunista Maria Alda Barbosa Nogueira, que, estando literalmente de malas feitas para ir trabalhar em França com a equipa de Irène Joliot-Curie, pegou nas mesmas malas e passou à clandestinidade em 1949. Que presa em 1958 passou 9 anos e 2 meses nos calabouços fascistas. Que durante todo esse período o único contacto físico próximo que teve com o filho (dos 5 aos 15 anos) foi de 3 horas por ano (!!!). Que, sublinhe-se, foi condecorada pelo Presidente da República Mário Soares com a Ordem da Liberdade em 1988. [ii]
Em Fevereiro deste ano, decidiu o senhor Presidente, no âmbito das suas funções, atribuir a Ordem da Liberdade a Volodymyr Olexandrovytch Zelensky.
Permita-me uma análise concreta da realidade concreta, em que a prática é o único critério da verdade.
O actual Presidente da Ucrânia desde o início do seu mandato (21 de Abril de 2019) é responsável por:
- Ter concluído o processo de ilegalização do Partido Comunista da Ucrânia - Lei de Descomunização com penas até cinco anos de prisão.
Graças ao senhor presidente da associação Refugiados Ucranianos e à senhora embaixadora ficámos todos a saber que no seu país «as organizações filtram as pessoas que lá trabalham». O referido senhor foi ainda mais longe ao afirmar que lhe custava perceber «como é que em Portugal não filtram as câmaras, as organizações não filtram as pessoas dentro de si próprias» e «quem são, o que é que fazem e quais são as ideias deles» e, por outro, «como é que Portugal, um país democrático, continua a ter um partido como o PCP». Lusa de Abril de 2022.
Ou seja, algo que o regime fascista português de Salazar e Caetano manteve até ao 25 de Abril de 1974 e que o senhor Presidente bem conhece porque o deve ter assinado: o juramento de fidelidade de todos os que trabalhavam para instituições estatais - «Juro por minha honra repudiar a doutrina da Rússia e seus satélites» (OGMA).
Estes actos foram acompanhadas de um silêncio ensurdecedor dos responsáveis políticos, em particular do senhor ministro dos negócios estrangeiros de Portugal.
Bastava este facto concreto para obstar à sua decisão. Contudo não foi esse o seu entendimento.
- Pelo menos mais 11 partidos políticos estão proibidos na Ucrânia. E os cidadãos a quem tenham sido detectadas ligações a essas organizações são privados dos direitos cívicos e eleitorais. Entre os partidos proibidos figura o “Socialistas”. Estão por isso proibidos de entrar no parlamento dezenas de deputados.
Não conheço declarações, nem da senhora Presidente do Parlamento Europeu, nem da delegação da Assembleia da República que recentemente esteve em Kiev, a denunciar esta situação...
- Além da ilegalização de todos os partidos políticos da oposição, existe na internet uma «lista de pacificação», incluindo os nomes e minuciosos dados pessoais dos «inimigos do Estado», ficando assim expostos ao terror nazi público, partidário e privado.
- A Ucrânia, antes da invasão russa começar, não podia ser classificada como um país democrático, pois alguns dos elementos básicos de um regime desse tipo não existiam ou eram deficientes. (revista The Economist)
A Ucrânia, em 2021, estava fora da lista de países democráticos, classificada como um país "híbrido", quase a cair no "autoritarismo", e ocupava um modesto 86.º lugar, mesmo antes de Senegal, Arménia, Libéria e Georgia.
- O governo ucraniano e grupos armados não-governamentais são suspeitos de praticarem a tortura e a detenção arbitrária durante o conflito que, desde 2014, decorre no leste da Ucrânia. Relatório sobre 2021 da Human Rights Watch que, por sua vez, cita a Missão de Observação dos Direitos Humanos da ONU na Ucrânia.
- O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) «detectou alegações de desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e incomunicáveis, tortura e maus-tratos perpetrados com impunidade pela polícia ucraniana, principalmente por membros dos serviços secretos SBU».
- Também os relatórios do insuspeito Departamento de Estado dos USA Country Reports on Human Rights Practices: Ukraine (2019, 2020, 2021) constataram que «a ONU observou deficiências significativas na investigação sobre abusos de direitos humanos pelas forças de segurança do governo (…) e alegações de tortura, desaparecimentos forçados.»
Ou ainda, segundo os mesmo relatórios: «Nenhuma justiça, verdade ou reparação foi alcançada para qualquer uma das vítimas de desaparecimento forçado, detenção secreta e tortura de civis pelo Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) e nenhum suspeito foi processado».
- Ter sido eleito defendendo activamente os acordos de paz de Minsk, sabendo que nunca iria aplicá-los, como confessou depois. Na esteira de Merkel, François Hollande e do seu antecessor Porochenko, subscritores de má-fé de um tratado de paz com o objectivo de fazer a guerra.
- Lei dos Povos Autóctones, promulgada por Zelensky, institui um regime racista que favorece, em direitos, os ucranianos puros em relação aos que têm origens familiares noutros países, mas são cidadãos nacionais desde a independência, em 1991.
As línguas minoritárias, designadamente russo, húngaro e romeno, não podem ser ensinadas, estudadas e usadas livremente.
No dia 21 de Julho de 2021 o presidente Zelensky promulgou a dita lei que só reconhece direitos plenos aos ucranianos de origem escandinava, segregando, com espírito de apartheid, os de origem eslava, em grande parte russófonos, os «pretos da neve». De acordo com a lei dos «povos autóctones», a língua russa foi suprimida dos serviços públicos e estatais, não pode ser ensinada, aprendida e falada.
- Proibir os canais nacionais televisivos 112 Ucrânia, NewsOne e ZIK.
- As rádios e TV’s públicas e privadas foram intervencionadas para que tenham uma programação única gerida pela presidência e a polícia política.
- Os jornais e outras publicações de oposição ou em línguas que não seja o ucraniano foram proibidos.
- Jornalistas, opositores políticos, deputados, sindicalistas e membros de partidos proibidos, além de um participante governamental nas negociações de paz de Istambul, em Março de 2022, foram assassinados ou «desapareceram».
- Existem campos de férias financiados pelo Estado destinados apenas a «crianças brancas» e nos quais é ministrado treino militar associado à doutrina banderista (ver ponto 19), incluindo a pré-adolescentes.
- Milhões de livros, entre eles clássicos mundiais de outras culturas, que não a ucraniana, estão a ser destruídos.
- Táticas de combate ucranianas colocam civis em perigo.
A Amnistia Internacional revelou em Agosto de 2022, que as forças ucranianas colocaram, desnecessariamente, civis em perigo. Ataques ucranianos a partir de zonas povoadas, existência de bases militares em hospitais em cinco locais diferentes, bases militares em 22 das 29 escolas visitadas.
- Ter permitido que o seu país se tenha transformado num campo de treino militar para a extrema-direita mundial. Jornal «Público» de 21 de Junho de 2020 (artigo reservado a assinantes). «A Ucrânia tornou-se para a extrema-direita o que a Síria foi para o Daesh. Militantes recebem treino, melhoram tácticas e técnicas e estabelecem redes internacionais, e depois regressam aos seus países. Milhares de estrangeiros combateram em milícias contra os separatistas pró-russos no Leste do país.»
- Em 2 de Março de 2018, The Guardian não hesitava em chamar ao Batalhão de Azov «notória milícia fascista ucraniana» e neonazi.
«Batalhão Azov, grupo paramilitar neonazista.» É assim que, já em plena guerra (25 de Março de 2022), o insuspeito Folha de S. Paulo qualifica a referida força.
«Who are Ukraine’s neo-Nazi Azov Battalion?», titulava, em 24 de Março, o Independent
«Neo-Nazis Azov battalion is Ukraine’s controversial custodian», titulava o The Economic Times.
Se os exemplos não foram suficientes, arranja-se mais, e noutras línguas…
- Refira-se que no dia 28 de janeiro de 2010 o Centro Wiesenthal, uma organização internacional de direitos humanos, com sede em Los Angeles, que adotou o nome do «caça-nazis» ucraniano, falecido em 2005, emitiu um comunicado a condenar a decisão do então presidente ucraniano, Viktor Yushchenko, por conceder postumamente o titulo de «Herói da Ucrânia», uma das maiores honras do país, a Stepan Bandera.
O Centro Wiesenthal, que é reconhecido pela ONU, pela UNESCO, pela OSCE, pela OEA e pelo Conselho da Europa - nada tem a ver com Putin - descreve Stepan Bandera com estas palavras: «um lider nacionalista ucraniano cujos seguidores mataram milhares de judeus e outros durante a II Guerra Mundial» e acusa o presidente ucraniano de «abraçar o legado de Bandera».
Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia: «Existem heróis indiscutíveis: Stepan Bandera é um herói para certa parte dos ucranianos, o que é uma coisa normal e legal. Ele foi um dos que defenderam a liberdade da Ucrânia». Estamos conversados.
Uma sugestão senhor presidente: pergunte ao seu homólogo polaco o que pensa sobre o assunto, ele que no expectro político se situa na extrema-direita.
O primeiro governo saído do golpe de 2014 e as estruturas adjacentes integravam representantes de grupos nazis, entre eles o primeiro-ministro adjunto, o ministro da Defesa, o ministro da Educação e Ciência, o ministro da Ecologia e Recursos Naturais, o ministro da Agricultura e Alimentação, o ministro da Juventude e Desportos e dois secretários do Conselho de Segurança e de Defesa. Não se conhece qualquer actuação de Zelensky para pôr fim a esta junta.
Com esta decisão anunciada, objectivamente, o senhor Presidente da República Portuguesa insulta o 25 de Abril, agride os portugueses, humilha os antifascistas.
As atitudes ficam com quem as praticam.
Breves notas finais: que fique claro que nada do que foi analisado justifica a invasão da Ucrânia pela Federação Russa. A invasão russa é criminosa. Viola o Direito Internacional. Torna as populações civis inocentes de toda a Ucrânia – e não desta ou daquela região – reféns de interesses oligárquicos, a oeste e a leste, que tiram proveito da guerra.
São necessárias iniciativas que contribuam para o desanuviamento e que privilegiem um processo de diálogo com vista a uma solução pacífica para o conflito, assim como à promoção da paz e da segurança na Europa, no respeito dos princípios da Carta da ONU e da Acta Final da Conferência de Helsínquia.
Penalva do Castelo, 20 de Agosto de 2023
António Nogueira de Matos Vilarigues
[i] Consultar o dossier sobre Sérgio Vilarigues no site do PCP https://www.pcp.pt/sergio-vilarigues
[ii] Consultar o dossier sobre Maria Alda Nogueira no site do PCP: https://www.pcp.pt/documento/centenario-de-alda-nogueira-brochura e / ou a monografia editada pela Assembleia da República «Maria Alda Nogueira da Resistência à Liberdade» da autoria de Maria Alice Samara.