A Irlanda e as fatais necessidades de um grande império (3), por Eça de Queirós
A Irlanda prepara-se para a insurreição...
A Inglaterra prepara-se para manter a integridade do império...
(...)
Este era o estado da Irlanda há dois meses, quando se deu o caso inesperado do Bill de Compensação. Este projecto de lei, apresentado pelo ministro Gladstone (parte por um sentimento liberal de justiça, parte para agradecer os fortes serviços dos Irlandeses nas últimas eleições), não trazia certamente um remate aos males da Irlanda; mas, coarctando os abusos dos senhores, dificultando a arbitrariedade das «expulsões», modificando a legislação bárbara das penhoras, aliviava o trabalhador irlandês do férreo calcanhar feudal que o esmaga. O bill passou aos aplausos da Câmara dos Comuns: mas escuso de acrescentar que a Câmara dos Lordes, essa augusta e gótica assembleia de senhores semifeudais, o rejeitou com horror, como a obra mesma do liberalismo satânico!
Vêem daí o resultado: os agitadores da Irlanda, os seus profetas, os seus chefes, apossaram-se com entusiasmo desta rejeição da Câmara dos Lordes – e utilizaram-na tão habilmente como António utilizou a túnica ensanguentada de César. Foram-na mostrando à plebe indignada, por campos e aldeias, gritando bem alto: «Aqui está o que fizeram os lordes, os vossos amos, os vossos exploradores! A primeira proposta justa, em bem da Irlanda, que se lhes apresenta, repelem-na! Querem manter-vos na servidão, na fome, no opróbrio das velhas idades, no estado da raça vencida! Às armas!»
E desde então a Irlanda prepara-se ardentemente para a insurreição: apesar dos cruzeiros que vigiam a costa, todos os dias há desembarques de armas; o dinheiro, os voluntários afluem da América: pelos campos vêem-se grupos de duzentos, trezentos homens, de espingardas ao ombro, fazendo exercícios como regimentos em vésperas de campanha; ainda que seja agora a época das colheitas, a população não está nos campos, está nos meetings, nos clubes; e os tribunos, os agitadores, prodigalizam-se sem repouso. Não falta decerto a estes homens nem coragem, nem aquela eloquência patética que faz passar nas multidões o arrepio sagrado. Um deles, Redathd, exclamava há dias:
«Dizem-nos a cada momento: sede justos, pagai ao lorde, pagai ao senhorio! E citam-nos a palavra divina daquele que disse: "Dai a César o que é de César!" Houve só um homem, Brutus, que deu a César o que a César era devido, um punhal através do coração!»
Esta brutalidade tem grandeza. Agora imagine-se isto lançado a uma multidão oprimida, com gestos teatrais desta raça violenta, de noite, num destes sinistros descampados da Irlanda, que são todos rocha e urze, ao clarão de archotes, dando aquela intermitência de treva e brilho que é como a alma mesma da Irlanda – e veja-se o efeito!
Em Inglaterra, mesmo os optimistas consideram a insurreição quase inevitável para os frios do Outono. E o honesto John Bull prepara-se: já o ministro do Interior está em Dublin, e é iminente a declaração da lei marcial... Neste ponto, radicais e conservadores são unânimes: se a Irlanda se levanta, que se esmague a Irlanda! Somente John Bull declara que o seu coração há-de chorar enquanto a sua mão castigar... Excelente pai!
O jornal Standard, o venerável Standard, tinha há dias uma frase adorável: «Se, como é de temer, a Irlanda vier a esquecer-se do que deve a si e à Inglaterra», exclamava o solene Standard, «é doloroso pensar que no próximo Inverno, para manter a integridade do império, a santidade da lei e a inviolabilidade da propriedade, nós teremos de ir, com o coração negro de dor, mas a espada firme na mão, levar à Irlanda, à ilha irmã, à ilha bem-amada, uma necessária exterminação.»
Exterminação é muito: e quero crer que está ali para rematar com uma nota grave, uma nota de órgão, a harmonia do passado. Mas o sentimento é curioso e raro: seria um espectáculo maravilhoso – ver, no próximo Inverno, John Bull percorrendo a Irlanda, cheio de ferocidade e afogado em ternura, com os olhos a escorrer de lágrimas e a sua baioneta a pingar de sangue... Ainda as fatais necessidades de um grande império! Volto ao meu desejo – um quintalejo, uma vaca, dois pés de alface... E um cachimbo, o cachimbo da paz...
In AFEGANISTÃO E IRLANDA, Cartas de Inglaterra, Texto Integral das Obras de Eça de Queirós
Ver também: Cartas de Inglaterra by José Maria Eça de Queirós - Project Gutenberg
adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge