Em 24 de Março, uma delegação do Partido, que integrou o Secretário-geral, encontrou-se com o Cardeal D. Manuel Clemente. O encontro visou a troca de opiniões sobre a situação do País e resultou de uma convergência de vontades e acerto de agendas.
O encontro foi positivo. Jerónimo de Sousa situou-o nas «... relações normais e institucionais com a Igreja ...», lembrou que «... não há um partido de católicos, todos os partidos têm católicos nas suas fileiras ...», valorizou «... a convergência de opiniões em relação à necessidade de alterar o rumo desta política, que produz e reproduz tanta injustiça e … pobreza e, com as naturais diferenças que existem entre o Partido … e a hierarquia católica, foi possível encontrar … pontos de vista comuns, formas de intervenção, a valorização do sentimento de confiança e esperança numa mudança de rumo, o valor da solidariedade, particularmente com os que menos têm e menos podem ...(e) a identificação do que … a Igreja e o Partido … procuram … um País melhor, com mais justiça social, com menos pobreza e desemprego, não ficando apenas na contemplação dos problemas, mas com intervenção concreta junto … dos cidadãos ….».
Estes são elementos importantes, no quadro da orientação geral do Partido para a construção de uma política e de uma alternativa patriótica e de esquerda, vinculada aos valores de Abril. Por isso, não se estranha a sua ocultação pelos media dominantes, nem as mistificações que traduzem o «incómodo» com o eventual crescimento da influência do PCP entre trabalhadores e sectores católicos. Para uns o PCP entrou na «caça ao voto», para outros deixou cair a «denuncia da opção capitalista da hierarquia». Mas a verdade é que essas questões estão discutidas há muito, em posições que são a base da nossa intervenção.
Em 1943, no auge da barbárie nazi-fascista, Álvaro Cunhal escreveu: «... a Igreja... tem apoiado… as atrocidades fascistas… por isso combatemos… (a sua política) e os sacerdotes fascistas... Mas não os combatemos pela actividade religiosa… (mas) sim pela actividade contra o povo e o País…». E «... não esquecemos que muitos ... são inimigos da Alemanha nazi … (e que) centenas de milhares de trabalhadores... são... influenciados pelo catolicismo, não podemos separar-nos dos nossos irmãos, operários e camponeses católicos..., ou (os) atraímos… para a luta contra o fascismo, ou deixamos que… se constituam em (sua) reserva… não fazemos a «guerra à religião» e não pretendemos atingir a liberdade de crença e de prática de culto…. Estendemos lealmente a mão aos católicos... para que participem no movimento nacional contra o fascismo...».
Em 1946, o IV Congresso do PCP apontou: «… Lutamos contra o sectarismo e incompreensão de muitos dos nossos militantes e …antifascistas republicanos. Houve erros de intolerância em 1910 que não devem... repetir-se...». Em «O Partido Comunista, os Católicos e a Igreja», de 1947, Álvaro Cunhal escreveu: «... As convicções religiosas, por si só, não são susceptíveis de afastar os homens na realização de um programa social e político,... comunistas e católicos podem e devem unir-se em defesa dos seus anseios comuns...».
O VI Congresso, em 1965, consolidou a orientação na relação com os católicos e outros crentes. A vida comprovou a sua justeza – com o papel de padres e católicos progressistas na unidade antifascista, na Revolução, no Portugal de Abril e na sua defesa.
Em 1974, com milhares de católicos militantes do PCP, Álvaro Cunhal afirmou: «…os comunistas defendem… boas relações do Estado com a Igreja. Esta... política não se baseia em critérios de oportunidade, mas numa posição de princípio.… O mundo evolui e a Igreja Católica... mostra também indícios de... evolução positiva.... Confiamos em que os homens mais esclarecidos da Igreja… compreendam… a sinceridade (e) as profundas implicações, para o presente e para o futuro, desta posição do Partido...».
Nos dias de hoje, o PCP continua a considerar que as convicções religiosas não mudam a posição de classe de cada um, nem alteram um programa social e político progressista.
A Igreja Católica registou mudanças. Cresceu a fusão do Estado do Vaticano com o capital financeiro, que factos recentes não parecem ainda ter superado, mas avançou a secularização e emergiram novas realidades e dinâmicas. Alargou-se o fosso entre o novo diagnóstico do actual Papa, da «economia de exclusão e desigualdade», da «economia que mata» e a indefinição ou ocultação de uma resposta de facto transformadora.
Não existe uma «questão religiosa» em Portugal e o PCP intervirá para que assim continue. Mas a verdade é que há estruturas da Igreja cuja actividade serve os interesses do grande capital. Neste quadro o PCP não pode abdicar do direito de resposta, se isso for impreterível.
A Igreja deve ser respeitada na acção religiosa e ouvida com atenção no plano institucional. Nada move os comunistas contra a Igreja, não acompanhamos posições anticlericais, de génese anarco-maçónica. A experiência mostra que é positivo o relacionamento regular entre o PCP e a Igreja, apesar dos preconceitos.
Hoje, o relacionamento dos comunistas com amplos sectores sociais e de massas, sejam ou não crentes, tem de aprofundar-se, na defesa dos trabalhadores, nas instituições, na CDU, na luta por um Portugal soberano e desenvolvido.
A experiência prova que não é difícil a convergência. O humanismo, a proximidade aos pobres e oprimidos, os valores de paz, justiça e igualdade do «cristianismo primitivo», que resistiu à assimilação pelo Império Romano, e o acervo cultural dos trabalhadores e das massas católicas não estão longe dos ideais comunistas.
No caminho para uma alternativa patriótica e de esquerda há passos a consolidar, com os católicos mais próximos da «Teologia de Libertação» e da «Igreja dos Pobres», com sacerdotes e crentes que não militem na política de direita, que não manipulem a religião como «ópio do povo», que se comprometam com a sua fé por um Portugal com futuro.
Centenas de milhões de euros, não declarados, foram encontrados em diferentes ministérios do Vaticano, revelou, dia 5, o cardeal australiano George Pell, que dirige o novo secretariado da Economia do papa Francisco.
«Descobrimos que a situação (financeira do Vaticano) era muito mais saudável do que parecia. Porque algumas centenas de milhões de euros estavam escondidas em diversas contas sectoriais e não apareciam nos balanços».
O responsável da Economia descreveu um sistema em que cada serviço mantinha e defendia a sua independência.
«Os problemas eram mantidos em reserva. Poucos eram tentados a confiar ao mundo exterior os problemas da sua casa, o que só acontecia quando precisavam de ajuda externa», afirmou.
O problema é que o diabo (!!!...) da Instrução está em inglês... Senhor Cardeal Patriarca, não podia fazer o favor de traduzir este texto para poder ser lido pelo seu rebanho? Prometendo este, o seu rebanho, que guarda a mais estrita confidencialidade, sob pena de excumunhão, claro.-
Entretanto, e como não há pachorra, aqui vai em inglês (os negritos não estão no original):
A expressão em Latim «crimen sollicitationis» refere-se a um avanço sexual feito antes, durante ou
imediatamente após a administração (mesmo simulada) do Sacramento da Penitência (Confissão)
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Mais adiante, vem a definição de crimen pessimum em que se equipara os «actos obscenos» com pessoas do mesmo sexo com os «actos obscenos» com crianças pré-adolescentes (impúberes) de ambos os sexos e com animais:
«Segundo a BBC, que ontem divulgou a existência desta cartilha num programa televisivo intitulado Crimes sexuais e o Vaticano, o documento de 39 páginas, escrito em latim em 1962 e distribuído pelos bispos católicos de todo o mundo, impõe um pacto de silêncio entre a vítima menor, o padre que é acusado do crime e quaisquer testemunhas ou pessoas a par do ocorrido. Quem quebrasse esse pacto seria excomungado pela Igreja Católica.
Crimen Sollicitationis terá sido mantido no segredo da hierarquia católica durante todos estes anos, marcado como altamente confidencial. Fornece elementos detalhados, segundo a BBC, sobre como proceder em caso de "crime de solicitação de actos obscenos, por palavra ou gestos, no quadro da confissão" - mas também sempre que se verifique "qualquer acto obsceno externo (...) com crianças de ambos os sexos". Os críticos garantem que o documento servia apenas para evitar a eficácia de qualquer acusação judicial por crimes sexuais - e também para silenciar as vítimas.»
«In his capacity as Prefect, Ratzinger's 2001 letter “Crimen Sollicitationis” which clarified the confidentiality of internal Church investigations into accusations made against priests of certain crimes, including sexual abuse, became a target of controversy during the sex abuse scandal. While bishops hold the secrecy pertained only internally, and did not preclude investigation by civil law enforcement, the letter was often seen as promoting a coverup.»
«Esta tipologia criminal (secção II do Capítulo V do Código Penal) está elencada em cinco categorias: Abuso Sexual de Crianças, Abuso Sexual de Menores Dependentes, Actos Sexuais com Adolescentes, Actos Homossexuais com Adolescentes e Lenocínio e Tráfico de Menores.»
Para esclarecimento (incompleto) do Senhor Cardeal Patriarca e de todo o clero é importante lembrar o Artigo 367º (Favorecimento pessoal) do referido Código Penal:
«Quem, total ou parcialmente, impedir, frustrar ou iludir actividade probatória ou preventiva de autoridade competente, com intenção ou com consciência de evitar que outra pessoa, que praticou um crime, seja submetida a pena ou medida de segurança, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
Creio que esta será, a nosso respeito, a impressão geral e definitiva: estamos fazendo muito barulho por causa de muito pouco toucinho...
E pensarmos nós, caro Chagas, que enquanto você está aí ocupado a compor no Atlântico uma formidável equação algébrica, para provar (Deus me perdoe!) não sei que coisas sinistras sobre as Molucas, enquanto eu me estou aqui abandonando a este pairar indiscreto — o grande Darwin publica o seu livro do Movimento das Plantas, o professor Huxley lança o seu grande manifesto da Educação Científica contra a Educação Clássica, Zola dá-nos o seu prodigioso trabalho sobre Gustavo Flaubert, tantos outros trabalham e criam, e o Génio do século forja, com um ruído sublime, na sua bigorna de bronze e ouro, as ideias e as palavras que ficam!
E nós, aqui, a escrevinharmos não sei que coisinhas minúsculas, que, apenas rabeiam um momento sobre o papel, são logo pó imperceptível!... — Você não tem vontade de se atirar a um poço? Eu tenho.
(...) Eça de Queirós, Brasil e Portugal, Notas Contemporâneas
Creio que temos conversado bastante. Não terminarei, porém, sem aludir a uma parte do seu artigo que me não parece prudente: é quando você fala de somas recebidas da Gazeta de Notícias, do alto preço por que me vendi para injuriar o país, etc... Eu bem sei que você usou notáveis precauções oratórias: mencionou o boato, e demoliu logo o boato; depois tornou a pôr de pé o boato, para volver a derrubá-lo com furor. Isto é amável; mas enfim você traiu a confidência, que eu lhe fiz. Lembra-se, Chagas? Foi naquela noite de tormenta, na encruzilhada, a poucos passos da capela solitária onde estava dobrando a finados. Eu cheguei rebuçado num manto cor de treva, e punhal à ilharga, deixando pela sombra um tinir de esporas. Um relâmpago fuzilou, e houve um tremolo na orquestra. Até eu lhe disse, lembro-me bem:
— Meu Chagas, esta situação patética parece mesmo inventada por você, amigo!
Você respondeu, com engenho:
— Parece. Eu teria colocado alguma luz eléctrica, batendo as roupagens de uma virgem, cuja alma o mundo não compreende...
Então eu arrastei-o para o pé do cruzeiro, onde bruxuleava uma lâmpada; e, sentados sobre os degraus de pedra fria, eu comecei a contar-lhe o meu segredo: que a Gazeta de Notícias me dava um milhão (um milhão em ouro) para eu injuriar semanalmente Portugal, deitar peçonha nas nascentes do Alviela e fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões!
Você tremeu, amigo! E murmurou-me ao ouvido estas palavras:
— Prudência, prudência...
Eu repliquei com furor:
— Hei-de beber o sangue a Portugal. Hei-de beber-lho!
Um trovão retumbou. Sobre um dos braços da cruz piou um mocho. E separámo-nos, na estrada negra, quando dava a meia-noite na torre da catedral.
Você tinha-me jurado segredo. E vem agora publicar tudo no Atlântico! Hei-de assassiná-lo no quinto acto...
Uma sugestão para José M. D. Barroso e outros. Da próxima vez que for necessário justificar o massacre de um país digam também que «eles» querem deitar peçonha na barragem de Castelo do Bode, fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões e beber o sangue a Portugal! E não se esqueçam de jurar que viram as provas...
E de quem vos contradisser digam que se vendeu por «alto preço».
Começou então o voltarete do senhor marquês. Você não foi admitido à partida do fidalgo: fez apenas um gamão subalterno com um monsenhor da Patriarcal. E pela sala, no entanto, iam sussurrando as conversações.
Discutia-se o processo de uma linda mulher de Alfama que comia crianças em salada: um desembargador aconselhou, para curar quartas, pérolas que tivesse usado a Rainha, moídas em pó: falou-se da escandalosa aparição de Belzebu no convento do Sacramento de Alcântara: e uma dama contou do judeu que dera uma dentada na perna do Senhor dos Passos da Graça!...
Isto arrepiou de horror. E foi então que você, Pinheiro Chagas, disse, depois de se pitadear com gozo:
— Mas há pior! Há pior!...
— Pior que a dentada? Não, ninguém podia acreditar que houvesse pior!
E você, pausado e grave, narrou o meu nefando caso: um herege, um jacobino, um traidor comprado pelo ouro do Brasil, tinha escrito que Portugal fora uma colónia brasileira, e que houvera horrores na nossa dominação da Índia!...
Fez-se na sala um silêncio trágico. As sedas, apavoradas, encolheram-se contra os monsenhores. De comovido, o herdeiro ilustre da casa de Ângeja perdeu a vaza. E os morrões das tochas pareceram mais tristes...
O sr. prior de S. Julião, esgazeando o seu olho de coruja, exclamou a tremer:
— E o monstro ainda não está no Santo Ofício?
— Trago-o de olho, meu reverendo — disse você, severo. — E hei-de ir falar ao Manique...
Ciciou então pelo sarau um suspiro de alívio. A sociedade estava salva! Chagas velava.
Já em baixo tilintavam os guizos das liteiras. Saiu-se. E foi você que, chegando-se ao senhor arcebispo de Tessalonica, e querendo resumir numa palavra todo o mundo de verdades e de ideias que se agitara nesse sarau, o esplendor intelectual que aí brilhava e para que você concorrera — disse respeitosamente ao prelado:
— Portugal é pequenino, mas é um torrãozinho de açúcar.
E sua eminência replicou, depois de arrotar:
— Tem você razão, brigadeiro Chagas.
Brigadeiro, sim! Brigadeiro do tempo da senhora D. Maria I! O último brigadeiro patriota!
A Nação tem sobre os conferentes do Casino esta admirável opinião:
Que eles iam ali falar, não por vontade sua, mas por ordem de uma associação secreta;
Que nenhum acto seu é espontâneo, mas execução de uma ordem da Internacional;
Que nada lhes pertence, em próprio, nem a acção, nem as ideias, nem o nome!
De modo que se um conferente toma à noite um sorvete no Áurea, é porque recebeu pela manhã este sinistro telegrama:
«Comité central: 7 da manhã. - Esta noite tomai sorvete botequim. Conveniente levantamento classes operárias! Em sorvete intransigentes. Viva a comuna! De morango!»
E o Sr. Antero de Quental, de ora em diante, terá de assinar assim o seu nome:
Antero (por assim dizer) de Quental (se ouso exprimir-me assim).
(...) Neste momento, eu vejo daqui o leitor honesto, que vai percorrendo estas linhas, parar, pousar o jornal, o seu charuto, e dizer de si para si, ou às senhoras que costuram ao lado: —Esta é singular! Caso lamentável e raro! O quê! é isto o que ele tinha escrito? Então, o procedimento do Sr. Pinheiro Chagas não me parece regular. Pois o outro cita as palavras de um jornal inglês, ofensivas para Portugal, condena-as como perversas e descorteses, e o autor da Morgadinha de Valflor atribui-lhas a ele e quer-lhe fazer suportar a responsabilidade delas? Se isto são costumes e maneiras literárias, bem faço eu em odiar os literatos! Porque é que o Sr. Pinheiro Chagas não citou o que o outro escrevera? Caso triste e antipático!... Riamos, meu caro Chagas, riamos aqui a este canto, abraçados um no outro! Rebolemo-nos! Como se vê que aquele honrado homem, que lê o Atlântico, ignora as amarguras, as necessidades formidáveis do jornalismo... A querer que você me citasse! O ingénuo! Se você me citasse, não podia fazer o artigo: e você tinha absolutamente de fazer o seu artigo!... Eu conheço a situação: é medonha. Na véspera tem-se dito ao director do jornal, apertando-lhe ferventemente a mão, e com a voz a tremer: —Palavra de honra, menino. Pela minha vida, que tens lá o artigo, além de amanhã, às nove horas. Eu sou incapaz de te comprometer! Juro-to, pela alma de meus filhos... Boa noite. Lá o tens! Depois, naturalmente, como você sabe, não se pensa mais no artigo. Mas, cruel destino! no dia aprazado, lá toca a campainha, lá chega, fatal, implacável, irrevogável — o moço da tipografia! É horroroso. Sobretudo quando ele usa botas que rangem! Fica à espera, passeando no pátio ou no corredor: e aquele lento gemer de solas tristes, cadenciado e acusador, alucina! E cá no nosso gabinete, que pavorosa luta! As cinco tiras de papel ali estão sobre a mesa, lívidas, irónicas, vazias: e é necessário enchê-las todas, de alto a baixo, com coisas extraídas do nosso interior. É trágico. A parte da carcaça humana a que se recorre primeiro é naturalmente ao crânio, depósito de ideias, impressões, adjectivos e teorias; aperta-se o crânio nas mãos frementes; sacode-se o crânio como uma velha algibeira: — nada sai do crânio. E as botas ao longe, a ranger! Maldição! Recorre-se então ao peito, asilo dos afectos, dos sentimentos generosos. Talvez de lá saia um canto, um grito, uma apóstrofe. Arranha-se convulsivamente o peito; bate-se desesperadamente no peito como numa porta fechada: — o peito fica mudo como o crânio. E as botas ao longe a ranger! Inferno! E então os crentes rezam à Virgem Maria; os ateus invocam a morte, a doce aniquilação da matéria; os mais violentos pensam em atrair o moço da tipografia com palavras doces, cortá-lo aos pedaços com uma navalha de barba, esconder os fragmentos na sarjeta doméstica... E as botas, lá no fundo, ironicamente, rangem! Ah, caro Chagas, é daí que vêm as cãs precoces. Sabe você o que eu fiz numa destas agonias, sentindo o moço da tipografia a tossir na escada, e não podendo arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito, ou do ventre? Agarrei ferozmente da pena e dei, meio louco, uma tunda desesperada no bei de Tunes... No bei de Tunes? Sim, meu caro Chagas, nesse venerável chefe de Estado, que eu nunca vira, que nunca me fizera mal algum, e que creio mesmo a esse tempo tinha morrido. Não me importei. Em Tunes há sempre um bei: arrasei-o. Por isso eu compreendo bem que você não me pudesse citar. Que diabo! se me citasse, adeus belas frases! adeus belo patriotismo! adeus belo artigo! — E você ouvia, no corredor, as solas malditas rangendo. Talvez eu, no seu caso, tivesse feito pior ... O leitor compreende agora as razões de ordem íntima que impediram o meu amigo e colega Pinheiro Chagas de me citar? (...)
Exemplos de como redigir um texto, seguindo o conselho de Eça, quando não se pode «arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito, ou do ventre»:
«Sejam quais forem os agravos em relação a outro País, há regras de convivência internacional que não consentem ofensas gratuitas nem linguagem de caserna nas palavras de um chefe de Estado contra outro Estado. Desta vez o bei de Tunes ultrapassou-se a si mesmo.»
«Embora inatacável quanto à sua lisura e genuinidade que veio afastar os limites constitucionais à reelegibilidade do bei de Tunes, o referendo constitucional não pode ser aplaudido sob um ponto de vista democrático-republicano.»
«Há pouca gente com dúvidas, mas também sem certezas. Há na CIA, nas Nações Unidas, gente com dúvidas sobre se as "provas" que os americanos apresentam são mesmo provas a sério, mas são mais dúvidas sobre as "provas" do que sobre o facto do bei de Tunes ter armas de destruição maciça.»
E depois de uns bons meses de campanha atacando «esse venerável chefe de Estado», lá para Julho e Agosto pode ser começada outra do género: Escândalo! O bei de Tunes vai à Festa do Avante!
O outro patriotismo é diferente: para quem o sente, a pátria não é a multidão que em torno dele palpita na luta da vida moderna — mas a outra pátria, a que há trezentos anos embarcou para a Índia, ao repicar dos sinos, entre as bênçãos dos frades, a ir arrasar aldeias de mouros e traficar em pimenta. Esse, a sua maneira de amar a pátria é tomar a lira e dar-lhe lânguidas serenadas. Esse sobe à tribuna do Parlamento ou ao artigo de fundo, e de lá exclama, com os olhos em alvo e o lábio em luxúria: Oh pátria! Oh filha! Ai querida! Oh pequena! que linda que és! — exactamente como tinha dito na véspera, num restaurante, a uma andaluza barata. Esse, coisa pavorosa! não ama a pátria, namora-a; não lhe dá obras, impinge-lhe odes. Esse, quando a pátria se aproxima dele, com as mãos vazias, pedindo-lhe que coloque nelas o instrumento do seu renascimento — põe lá (ironia magana!) o quê? os louros de Ceuta! Quando o povo lhe pede mais pão e mais justiça, responde-lhe, torcendo o bigode: — Deixa lá... Tu tomaste Cochim.
É esse patriotismo que, quando alguém solta uma verdade, acode de mão à cinta, e com a Monarquia de Frei Bernardo de Brito apertada ao coração, exclamando: — Olá, que injúria é essa à pátria? Pois não sabes tu, ignorante, que nós somos ainda temidos na Índia? E a prova tenho-a neste in-fólio! E querendo garantir a indolência própria, por uma grande inércia pública, esse patriotismo aconselha que se não faça nada, nada se estude, nada se crie — porque o senhor D. Manuel foi outrora um grande rei! E apenas um homem sincero tenta despertar a alma portuguesa e o seu génio do sono em que ela se afunda — esse patriotismo corre, debruça-se, e procura tornar esse sono da pátria mais pesado e mais profundo, cantando-lhe ao ouvido a lenda embaladora da tomada de Arzila!
Este patriotismo, caro Chagas, é o dos brigadeiros vestidos à moderna. E, lamento ter de dizê-lo, parece-se muito com o seu. Os Franceses chamam-lhe chauvinisme: eu chamar-lhe-ia entre nós patriotice. E aos que o cultivam daria os nomes (segundo os seus diferentes temperamentos) de — patriotaças, patriotinheiros, patriotadores, ou patriotarrecas. É o vício fatal que leva às catástrofes. É ele que não deixando fazer nada sob o pretexto que já se fez tudo, imobilizando a nação num pasmo fictício para o passado, que a impede de trabalhar pelo futuro — é ele que dá à Áustria Sadova e à França Sedan. É ele que grita no bulevar: A Berlim! a Berlim! — quando moralmente no bulevar já marcham os Prussianos. Fazendo discursos como Mr. Prudhome, produz finais como Ésquilo. E têm depois os patriotas de vir recompor as ruínas que fizeram os patriotinheiros! (...)