A Guerra Civil de Espanha vista por Manuel Tiago (8)
(...)
Manuel decidira ficar. Sentia-se melhor assim. Como milhares de outros combatentes. O exército popular reforçava-se. Crescia a solidariedade internacional. Revelavam-se comandantes militares e comissários políticos nascidos da luta armada do povo.
A progressão do avanço fascista era agora entravada não só e fundamentalmente pelo povo em armas mas também pelo Exército Republicano, que rapidamente se organizara.
Depois, segundo os camaradas, com a formação do Governo de Largo Caballero terminavam as hesitações.
(...)
Também acreditava que a entrada dos comunistas no Governo seria decisiva para organizar, disciplinar e unificar as forças armadas da República, mas não se sentia tão optimista quanto a resultados a curto prazo.
Franco instalara o seu quartel-general em Sevilha e falava-se que, proclamando-se chefe de Estado e Generalíssimo, iria instalar-se em Burgos como capital. No Norte caíra Irún. No caminho de Madrid, Talavera de la Reina e Toledo tinham caído também. Os fascistas apareciam nas várias frentes cada vez com armas mais poderosas. A intervenção alemã e italiana intensificava-se.
(...)
Os combates ganhavam dia a dia maior intensidade. Os fascistas tinham conquistado Talavera, mas não conseguiam romper caminho para Madrid. As suas ofensivas continuavam a ser contidas no Guadarrama, em Somosierra e noutras frentes onde os republicanos concentravam forças. António via o rodopiar incessante de ambulâncias e camilleros. Mais mortos e feridos se anunciavam. De Manuel não havia notícia, não voltara a casa. E cada dia, vezes sem conto as idas e as voltas dos camilleros traziam à memória a lembrança de Renato e das suas palavras «de quê?» quando lhe perguntara se tivera medo debaixo de fogo.
(...)
O local tornara-se conhecido em Somosierra.
Pela encosta as posições nas primeiras linhas mantinham-se há muito sem alteração. A distância que ali separava as forças inimigas era de cem metros escassos. Nem trincheiras, nem bunkers, nem barricadas. Os abrigos eram as sinuosidades do terreno, penedos, tufos de arbustos reforçados por improvisadas trincheiras ou barricadas.
Os fascistas tinham meios materiais superiores, nomeadamente morteiros e metralhadoras. Os republicanos, além de coragem e do estilo de combate, tinham adquirido uma vantagem de posições. Sobretudo, num socalco natural, com um penedo escuro de feitio estranho que facilitava a defesa e permitia, pela disposição do terreno, partir em contra-ataques quando o inimigo tentava avançar.
Em Somosierra falava-se na Peña de la Piedra Negra, dos repetidos e violentos ataques fascistas para romperem por ali e na defesa bem sucedida dos republicanos.
Naquele dia, uma vez mais Manuel e os companheiros se bateram com a habitual coragem. Em Somosierra admiravam-se como a já bem conhecida Brigada Consuelo Núnez, brigada de jovens agora reforçada por muitos outros, conseguira resistir ao longo de semanas. Como durante dois dias e duas noites contivera um violento ataque, com metralhadoras, morteiros e granadas. Dois dias e duas noites. Já se tornara conhecida a forma particular de combater da brigada, sempre nas avanzadillas. Móvel, rápida, deslocava-se no terreno, mudava de posições, desorientava o inimigo, surpreendia-o com fogo donde ele menos esperava. Tornou-se sobretudo notável a audácia de velozes incursões a atacar o inimigo pela retaguarda.
(...)
Não se enganava. Não dormia. Invadiam-no reconfortantes lembranças. Aquelas poucas semanas decorridas desde o golpe de Franco tinham sido as mais perigosas da sua vida. As mais agitadas. As que haviam exigido dele respostas que nunca admitira pudesse dar. E o que se passava com ele, via-o também passar-se nos outros. Nunca supusera, nunca sonhara sequer, que no ser humano — reconhecia-o agora não só nos outros mas em si próprio — existissem tantas potencialidades de ir muito além do que cada qual pode avaliar. Manuel, Renato, Isabel, Rúbio, Eulália, Madrecita, Raul e outros vinham, uns atrás dos outros, à sua lembrança. Depois de tantas semanas de insatisfação, interrogações, dúvidas e angústias, essas horas de insónia apareceram-lhe como horas desejadas. De reflexão e de tranquilidade.
Nesse enovelado desfilar de lembranças e sentimentos veio-lhe também à memória a troca de palavras que um dia tivera com Manuel. Quando, indignado com o caso de Tó Marcolino, lhe dissera:
— La verdad, Manuel, es que hay mucha gente mala en este mundo.
Lembrava-se agora do que Manuel lhe respondera.
— O extraordinário, António, é que no mundo haja tanta gente boa.
(...)
Corria a guerra, cada vez mais generalizada, violenta e terrível. Vitórias e derrotas. Ofensivas e retiradas. Momentos de impetuoso avanço e momentos de perigo iminente de derrota. Em princípios de Novembro o Governo transferiu-se para Valência e os fascistas chegaram com poderosas forças às portas de Madrid.
Ali na Casa de Campo, bem perto da casa de Eulália. Ali, com o povo em armas e com as novas unidades militares, se revelaram novos comandantes. Ali tombaram conhecidos comunistas. Ali tombou Durruti, dirigente anarquista catalão. Madrid, capital da República, sujeita a um novo e terrível bombardeamento aéreo. Madrid, símbolo de heróica resistência antifascista, repeliu o inimigo.
Por toda a Espanha, com a intervenção militar da Alemanha e da Itália e a crescente solidariedade à República, a guerra civil adquiriu contornos de uma guerra internacional.
(...)
Pelo caminho foram conversando. Em Portugal não haviam recebido mais notícias de Madrid, dos camaradas portugueses. Abel informou-o da situação. Informou também de outros portugueses que haviam aparecido e se haviam integrado nas unidades espanholas ou nas Brigadas Internacionais.
— Não perguntes por eles. Os Lopes são inscritos como López, os Domingos como Domínguez, os Rodrigues como Rodríguez.
(...)
De súbito perguntou:
— Dime, compañero, vamos a perder la guerra?
Antes que o camarada falasse, passaram como um relâmpago na memória de Abel as palavras de Rúbio que António lhe citara: «Las grandes luchas victoriosas de los trabajadores y de los pueblos han sido po-sibles porque los trabajadores y los pueblos han luchado en cada caso confiando en la victoria, pero sin tener la certeza de alcanzarla.»
Já o camarada respondia. A situação era difícil. Hitler, Mussolini, com o apoio de Salazar, queriam esmagar a República Espanhola para terem uma retaguarda segura na guerra que se preparavam para desencadear em toda a Europa. Inglaterra e França, com a farsa da «não intervenção», não faziam frente à intervenção nazi-fascista, nomeadamente a Hitler, antes queriam ganhar as suas boas graças e apontavam-lhe o caminho da agressão à União Soviética.
O camarada não se alargou muito mais e quis concluir.
Nos tempos próximos, o mundo iria passar um período complexo e perigoso. Mas a situação seria superada. Em Portugal, na marinha de guerra, os marinheiros tinham-se revoltado e tomado conta dos barcos e a revolta, embora esmagada, mostrava grandes potencialidades revolucionárias.
Madrecita fazia esforço para acompanhar o que o camarada dizia e para se convencer de ser essa a realidade.
— A luta continua — acrescentou ainda o camarada. E repetiu a ideia. — Aqui em Espanha e em todo o mundo, o fascismo acabará por ser derrotado. Isso é certo. Podes crer, camarada.
(...)
Excertos do Capítulo 7 e 8 de "A Casa de Eulália"