Como fora possível a António imaginar que o português preso por suspeita no Guadarrama fosse Manuel? Apenas porque Guadarrama e Manuel a combater no Guadarrama eram pensamentos inseparáveis. Porque tinha visto de perto a coragem de Manuel e receava cada dia que ele ali perdesse a vida.
Não, com Manuel não se podia ter passado aquilo. Porque desde os primeiros dias combatia nas linhas mais avançadas. Porque dava a cada momento provas de iniciativa e de valentia. Porque era querido pelos camaradas espanhóis com os quais continha com êxito na Serra as tentativas de os fascistas romperem caminho para Madrid.
Logo no primeiro dia, participara no assalto ao Cuartel de la Montaña e fora daqueles que rompera portão dentro a finalizar à metralha os últimos actos de resistência dos oficiais sublevados.
Depois em Carabanchel, quando avançava com António e com a vaga do povo armado, vendo que o nicho fascista da metralhadora tinha sustido o ataque, a ideia lhe viera rápida e instintiva. Por ali não avançavam. Não conseguiam. Só atacando os fascistas pela retaguarda. E disparara em correria procurando vencer o espaço descoberto onde se cruzavam as balas. Ele próprio se surpreendeu com o êxito. Descendo mais e mais, descrevendo uma prolongada curva na encosta, viu-se ante um terreno nu e um pouco acima, de costas para ele, sem qualquer apoio na retaguarda, o grupo dos quatro ou cinco fascistas fazendo fogo com a metralhadora. A Mauser era pouco para o confronto. O factor psicológico iria decidir. Manuel surpreendia-se a si próprio com a rapidez com que apreciava a situação e encontrava a resposta. «Quando se virem atacados pela retaguarda, põem-se a fugir.» Rastejou, aproximou-se e fez pontaria. No estrondoso fragor da batalha que ressoava na atmosfera, os dois tiros de espingarda nem se ouviram. Junto à metralhadora, atingidos pelas balas, dois corpos caíram. O crepitar da metralhadora cessou e os sobreviventes do grupo, abandonando as armas, correram desesperados em direcção ao aquartelamento.
Descendo as encostas o avanço tornou-se irresistível. Manuel perdeu de vista o mocinho que se colara a ele e também não mais viu António e os do seu grupo. Decerto tinham ficado muito para trás. Continuou o avanço acompanhado por muitos outros que de todos os lados surgiam. Com eles foi dos que, nas primeiras linhas, confraternizando com militares fiéis à República, forçaram os oficiais sublevados à rendição.
Voltara a Madrid no cortejo da grande coluna vitoriosa integrado num grupo de jovens combatentes espanhóis com quem partilhara o último assalto. Com Pablo, com Jaime, com Alonso, com Consuelo. Grupo de combate que, como centenas de outros, se criara, constituíra e actuara como unidade militar nessa mesma manhã. Uma só manhã. Haviam-se escudado uns aos outros sempre atentos ao inimigo e à acção e perigo que corriam os companheiros. Vencendo o inimigo e vencendo a morte, que incessantemente rondava a seu lado. E agora Pablo, Jaime, Alonso, Consuelo, Manuel, olhavam-se como conhecidos de sempre e como se não pudessem mais separar-se.
(...)
Juntos tinham regressado a Madrid com as forças vencedoras de Carabanchel. Ao contrário dos muitos que dispersaram, eles não mais se separaram das forças armadas. Donde veio a indicação ninguém o saberia dizer. Uma coisa foi certa para eles e para milhares de outros combatentes. Alguém os integrara na coluna militar que partira para o Guadarrama a cortar o passo aos fascistas que avançavam do Norte. Ao integrarem-se nessa coluna não eram mais apenas cinco amigos que se haviam unido no combate. Eram bem, e como tal se sentiam, uma unidade militar do novo exército, do exército popular em formação desde esse dia.
Eles e centenas de outros foram conduzidos directamente para as linhas mais avançadas na Serra. Certamente havia já quem conhecia o terreno e comandava a disposição das forças. O certo porém é que, depois de estarem na Serra, cada qual por si tomava a iniciativa de escolher as suas posições.
Manuel e os seus companheiros, entre muitos outros, foram conduzidos até uns penhascos sobranceiros a um vale ao longo do qual serpenteava uma estrada.
A missão era simples. Para impedir o avanço fascista pela estrada, havia outras forças, com outros meios, que dali não se viam. Essas dispunham de artilharia, metralhadoras e morteiros. Ali a tarefa era outra, era impedir que os fascistas, avançando pelas encostas, ganhassem posições dominando o vale, ou conseguissem atacar as tropas republicanas pela retaguarda.
A previsão confirmara-se. Logo nos primeiros dias travaram-se combates por toda a Serra.
Manuel, Pablo, Alonso, Jaime, Consuelo, agiam como uma unidade de combate. Com iniciativa. Ajudando-se e assistindo-se mutuamente.
Uma vez foi Manuel a ficar isolado em má posição. E foram Pablo e Alonso quem, com grande risco, tomando perigosas posições, seguraram os fascistas e deram cobertura a Manuel.
Outra vez foi Manuel que viu os companheiros em situação de perigo. Os fascistas tinham ganho uma posição superior no terreno e daí faziam fogo. Nesse momento vieram à memória de Manuel as Festas Populares de Lisboa, os camaradas a lançarem os manifestos e ele, Manuel, assegurando a sua defesa, atacando o polícia que os prendera. Tal como em Carabanchel, a iniciativa saiu-lhe natural e sem esforço. No caso tinha que ganhar uma posição no terreno superior à dos fascistas, daí dominá-los, obrigá-los a fazer fogo na sua direcção e assim abrir espaço a Pablo e Alonso para se escaparem.
Batiam-se em conjunto, não pensando sequer na morte, quase parecendo que brincavam com ela. Mas na guerra a morte não só espreita como golpeia sem piedade. Logo nos primeiros dias do Guadarrama o grupo sofreu duro golpe. Consuelo, a jovenzita que se lhes juntara em Carabanchel, que de espingarda em punho avançara com eles no ataque final ao aquartelamento, que ali no Guadarrama procurava sempre as primeiras linhas e os maiores riscos, heroína do grupo e querida de todos, caíra em pleno combate.
Já o Sol ia alto na manhã quente de verão, sentou-se no solo a descansar os pés e olhou em volta.
Donde viera, para ocidente e para sul, alongava-se a planura a perder de vista. Amarela, luminosa e tranquila. Nenhum sinal da guerra cruel que sobre ela se travava, dos massacres, das destruições, da fuga dos povos em busca da salvação.
Para nascente e para norte, recortando agora o horizonte, ondulavam colinas com árvores perfiladas ou tufos verdes anunciando a proximidade de aldeias ou casais.
A confirmar a ideia, ao dobrar uma ondulação do terreno, deparou com duas casitas arruinadas e desertas e, a partir dali, um inesperado declive por entre arbustos e mato. Serpenteando na descida, carreiros irregulares de terra ocre desenhavam com nitidez na natureza o repetido pisar de gente.
Logo adiante, surpresa, deu com um homem de pé à sombra de uma azinheira solitária. Ali a poucos passos. Que poderia fazer um homem sozinho naquele deserto? Parou. Por sua parte o homem olhou desconfiado tão rara figura.
— Buenos dias... — atirou António.
O homem murmurou palavras incompreensíveis e empertigou-se como que temendo uma agressão.
— Buenos dias... — repetiu António.
— Buenos dias — respondeu finalmente o outro.
— No hay ningún pueblo en las cercanias? — perguntou António.
O homem encolheu os ombros ante tal disparate.
— Qué pueblo?... E acrescentou, quase agressivo:
— Adonde vá usted?
— Los fascistas no están lejos — explicou António.
O homem calou-se. Depois com súbita decisão:
— Siga usted su camino, que yo sigo el mio — voltou as costas, saiu da sombra da árvore e deu dois passos a afastar-se.
Num salto sobre os pés doridos, António pôs-se-lhe no caminho.
— Me hacen falta unas botas. Estoy descalzo, no puedo andar...
Difícil definir o tom das palavras, misto de imposição e de súplica.
— No puedo hacer nada — condescendeu o homem e respondeu à pergunta anterior. — No hay ningún pueblo en las cercanias.
António sentia-se atordoado por um turbilhão de ideias contraditórias. Só havia uma solução. Era má. Mas a única. A única. E insistiu nesta palavra para tomar a decisão.
— Sus botas! — disse ameaçador.
— Está usted loco o qué? — respondeu o homem engrossando a voz. — Siga su camino que yo sigo el mio.
— Alto aí! — gritou António. — Usted me vá a dar sus botas porque tengo que llegar hasta Madrid.
— Está loco! — repetiu o homem e fez menção de romper caminho.
Estacou. Diante dele viu apontado o pesado Smith 32 na ponta do braço estendido.
— Usted me perdone — disse António —, pero me dá las botas o le mato!
O homem ainda hesitou.
— Mato mismo! — gritou António, apontando o revólver.
Então, subitamente apressado, o homem sentou-se no chão, descalçou as botas e ficou quieto, estupefacto, sem saber que fazer.
António calçou as botas com dificuldade. Os pés feridos quase o obrigavam a gemer. Felizmente o homem tinha pés grandes e volumosos e as botas não comprimiam as feridas.
— Usted me perdone, amigo — disse ainda António, sempre empunhando a arma. — No tengo outra solución. Me perdone, amigo.
Tinha consciência de que era absolutamente inútil e tonta a explicação. Sentia porém necessidade de dizer aquilo e muito mais.
Após breves momentos afastou-se, deixando o outro sentado no chão, olhando aturdido as meias nos próprios pés.
Algumas passadas mais longe, António parou, voltou-se para trás, triste e desconsolado consigo próprio, com vontade de voltar e restituir as botas ao homem. Depois abanou a cabeça a sacudir remorsos e afastou-se.
(...)
Tudo pareceria dar razão ao pai de Conchita. O que poderia na realidade servir os fascistas nesse descampado? Donde poderiam vir, para onde poderiam seguir? Para quê e porquê uma incursão na extensão da planura quase deserta?
Não passou porém o dia sem que tal optimismo fosse desmentido. A umas duas horas de marcha António deu com três corpos caídos à margem de um carreiro. Dois homens e uma mulher, enrodilhados, mortos, exalando o cheiro fétido da decomposição. Centenas de metros adiante, mais corpos, estes distantes uns dos outros, como se alvejados ao fugirem. Um homem, uma mulher, uma criança. Terra, sangue, moscas e formigas.
Donde teriam vindo os assassinos? Para onde iriam? Quem eram afinal? Com que fim uma incursão na planície deserta?
«Por qué iban a hacernos daño?», questionara o pai de Conchita. «Aqui no hay nada que les pueda servir.»
Ilusão que nessa mesma tarde teve novo desmentido.
Tendo caminhado mais duas ou três horas, António deu com outra casa isolada. Frente à porta um homem morto, o rosto esmagado numa pasta vermelha em que se distinguiam os olhos abertos e espantados que a morte não fechara. Na soleira uma mulher também morta, num mar de sangue coalhado e seco, roupa rasgada, saia erguida, seios nus, vários golpes no peito e pescoço. Lá dentro mais ninguém. A mísera morada não apresentava sinais de ter sido revolvida.
Embora faminto e cansado, António não se lembrou sequer de procurar na casa com que matar a sede e a fome. Nem de procurar meias para os pés feridos e uma camisa para substituir a que rasgara. À memória saltou-lhe apenas de novo a frase do pai de Conchita: «Si no hay nada que les pueda servir por qué iban a hacernos daño?»
E afastou-se o mais rápido que lhe permitiam a fadiga e o trambolho dos pés.
Militarmente derrotados, os fascistas tinham, em numerosas zonas da cidade, subido para os telhados, passavam de uns prédios para outros e das azoteas faziam fogo sobre quem passava. De baixo respondiam, mas era difícil acertar-lhes e desalojá-los. Quando o fogo abrandava, os que de baixo combatiam, ao mesmo tempo que com repetidas rajadas forçavam os dos telhados a suspender o fogo, gritavam para quem queria atravessar a rua.
— Carnet en la mano! Carnet en la mano!
As pessoas levantavam o braço com os documentos na mão, corriam o mais que podiam para chegar ao outro lado a procurar abrigo das balas que não tardavam a chover.
(...)
Avançava a manhã e o calor. As ruas enchiam-se de movimento. Homens, mulheres, jovens, crianças, circulavam sem se saber bem para onde iam. O paqueo, mais ou menos, vivo continuava. A todo o instante, a grande velocidade e com súbitas travagens a evitar atropelar alguém, passavam carros com enormes bandeiras. Vermelho, amarelo e lilás do partido republicano, vermelho com a sigla PSOE do partido socialista, vermelho com a foice e o martelo dos comunistas, preto e vermelho em diagonal dos anarquistas. Bandeiras quase do tamanho dos carros, cada qual a querer que a sua fosse a maior.
Apesar da guerra civil que começava, das notícias vindas das regiões ocupadas pelo golpe, do avanço das tropas fascistas, das violências e atrocidades já conhecidas, do paqueo que continuava, o ambiente nas ruas era mais que calmo, despreocupado. Em Madrid o golpe fora derrotado. O povo da capital respirava fundo. Milhares de pessoas passeavam com manifesta alegria.
(...)
Tiroteio. Execuções sumárias por uns e por outros. O general Fanjul conseguira escapar-se do Cuartel de la Montaña. Os fascistas derrotados em Madrid continuavam a bater-se em grupos dispersos, esperançosos de que Franco chegaria prontamente à capital.
(...)
Quando anoiteceu não se acenderam as luzes na Gran Via. No escuro da noite mal se divisavam os vultos enormes dos edifícios. Dos lados da Puerta del Sol, cortando o espaço, chegava o ruído do paqueo. Na avenida descendo para a Plaza de España ouviam-se passos de gente que ainda se deslocava na cidade.
Aqui e ali grupos armados. Alguns explicavam o que havia a fazer e orientavam as coisas. Comandantes espontâneos a formar-se e a afirmar-se.
Os grupos colocavam-se emboscados às esquinas das transversais. Se os fascistas repetissem a façanha anterior, era preciso fazê-los parar.
Não tinha passado muito tempo da explicação, dois faróis luziram lá ao cimo da avenida. Correrias no escuro de gente a abrigar-se. Logo o carro avançou desalvorado avenida abaixo, abrindo fogo de automáticas a varrer os passeios e a destruir as montras.
Na primeira, na segunda, na terceira transversais soaram nas esquinas tiros de espingarda e pistola, uns atrás dos outros, mas o carro, sempre metralhando, passou uma, passou outra, e acabou por sumir-se na Plaza de España ao fundo da avenida. Um morto e dois feridos foi o lastro que deixou nos passeios.
— Cabrones! — soou uma voz no escuro, cortando o silêncio que se seguiu.
Não decorreu muito tempo sem que a cena se repetisse. Dessa vez o carro foi atingido, talvez na direcção, talvez nos pneus. Não parou entretanto. Sempre fazendo fogo, mal controlada a direcção, conseguiu também escapar-se.
— Me cago en su madre! — indignou-se Pepe que, com António, com Renato, com o seu grupo, se tinha emboscado numa esquina. — Qué mala puntería!
Transcorrida meia hora, ouviram-se de novo súbitas fuzilarias e ruidosas derrapagens. Um carro surgiu de uma transversal, deu rápida curva para a avenida e arrancou em vertiginosa embalagem na descida, faróis nos máximos apontados aos olhos de quem o defrontasse. O grupo fez fogo. O carro avançou, aproximou-se mais, mais, quase a passar e de súbito um vulto saltou da esquina para o meio da faixa de rodagem, os faróis avançavam — «ele mata--se, ele mata-se!», pensou António — mas logo, certamente por reacção instintiva do que guiava, o carro desviou a direcção, derrapou em pião e com estrondo foi estacar do outro lado da via, o capot enganchado de encontro a um poste da iluminação, o claxon a tocar como um alarme. De dentro saltaram alguns vultos a fazer fogo e procurando escapar-se ao longo dos prédios. Não foram longe. Um atrás do outro caíram varados. No local correram as patrulhas a rodear o carro. Quebrando o novo silêncio que se fizera, ouviu-se um único tiro. De pistola.
Na confusão que se gerara no escuro, custou a António encontrar Renato. Ao ver o vulto lançar-se à frente do carro com os braços levantados, parecera-lhe ser ele.
Quase indignado, pelo perigo irreflectido que o camarada correra, perguntou:
Pelo caminho, perguntaram para onde ia tanto pessoal.
— Que adónde? Al asalto del Cuartel de la Montaña, adónde querias que fuera?
À medida que se aproximavam do centro, intensificava-se o tiroteio, passavam mais carros com bandeiras, via-se mais gente com espingarda à bandoleira ou na mão.
(...)
Pelas ruas estreitas da cidade velha, correram para onde todos corriam, cada vez mais envolvidos por intenso tiroteio. Já não eram disparos soltos, mas a atmosfera dominada pela orquestra ininterrupta de um fogo cerrado. Disparos próximos e o silvar de balas de origem indeterminada, a diversidade dos tiros de pistola, espingarda e metralhadora, o som simultâneo, sobreposto ou fundido, de zonas de fogo às mais diversas distâncias, o abrandar de umas, a brusca intensificação de outras, o ressoar compassado mais distante dos tiros de canhão, os ecos respondendo a ecos fluindo e refluindo por ruas e ruelas — a grandiosa e terrífica sinfonia de uma batalha urbana.
O inimigo foi surgindo pouco a pouco. Emboscado num portal ou numa esquina, cortando o avanço por uma rua transversal, ou abrigado em improvisados obstáculos. Até aí seguiram uma corrente de gente armada, dando tiros como os outros, sem saber onde começava e onde acabava a linha de confronto e sem discernir qualquer comando.
Foram finalmente retidos num cruzamento, onde pela primeira vez se apercebia alguém que comandava, ou pelo menos orientava Três ou quatro civis armados indicavam a uns e a outros que se chegassem aos prédios e aos vãos das portas e seguissem em frente com cuidado. Logo adiante, com o som da fuzilaria a dominar o espaço, as precauções intensificaram-se. A uma esquina, deitados por terra, atrás de uma tosca barricada, populares faziam fogo contra um inimigo que os recém-chegados não viam.
Inesperadamente os da barricada deixaram de disparar, levantaram-se de armas na mão, acenaram aos recém-vindos para os seguirem, dobraram a esquina colando-se aos prédios e avançaram rua fora, agora sem oposição. Noutra esquina o tiroteio recomeçou e Manuel e António, com os outros, atiravam também. Os fascistas, certamente reforçados, opunham-se agora dos telhados, varando as ruas com saraivadas de balas.
(...)
Ao voltar de mais uma esquina, com o redobrar violento do fogo, depararam, aí a duas centenas de metros de distância, com os altos muros e o portão negro do Cuartel. De fora, nas primeiras linhas, civis armados e soldados fardados das unidades fiéis à República alvejavam o friso dos muros, donde sem parar disparavam os fascistas. Avançar mais como? Era campo descoberto, sem qualquer abrigo. Depois o muro e o portão.
Não demorou porém muito a resistência. Ainda na manhã a batalha se decidiu. Sem que os assaltantes o esperassem, abriram-se os portões e, de roldão, em mangas de camisa e agitando os braços ao alto com farrapos brancos, saíram dezenas de soldados, que correram a atravessar o campo raso.
Atrás deles tiros dispersos fizeram cair alguns. Depois, durante breves minutos, o fogo cessou. Então, vindos de todos os lados, avançaram em sentido inverso soldados e centenas de populares, armados uns, desarmados outros, que romperam pelo portão e se sumiram lá dentro. Manuel correu veloz e entrou também. Cá fora ouviu-se furiosa fuzilaria. Aos tiros de espingardas, metralhadoras e pistolas somavam-se agora algumas explosões soltas de granadas.
(...)
Soube-se depois. Aos que entraram no Cuartel apresentou-se um cenário aterrador na parada. Reféns apanhados no autocarro — homens, mulheres e crianças — jaziam por terra, estendidos uns, contorcidos outros, chacinados, manchados de sangue ainda fresco.
Boa parte dos soldados tinham-se sublevado, aberto os portões e passado para o lado republicano. Outros, despida a farda, eram deixados seguir em paz. Os oficiais foram-se rendendo também. A resposta ao crime foi inevitável. Os primeiros assaltantes, farda que vissem atiravam a matar. A guarnição militar de Madrid, sublevada pelos fascistas, fora derrotada pelo povo em armas.
— A Carabanchel! — gritaram de uma camioneta.
— A Carabanchel! A Carabanchel! — repetiram outros.
(...)
Carabanchel. Aquartelamento militar nos arredores da capital. Vários regimentos. Soldados das unidade madrilenas fiéis à República e o povo armado começaram o cerco.
(...)
A conversa suspendeu-se num breve embaraço. Depois o camarada retomou a palavra e explicou.
Já tinham vindo lá a casa camaradas espanhóis que o haviam informado da situação. Pelo que então se sabia, no Sul tropas marroquinas trazidas por Franco apareciam a par dos carlistas requetés como a principal força de combate. Com extrema ferocidade espalhavam o terror. De uma maneira geral as unidades militares tinham acompanhado o golpe. Os fascistas avançavam para Norte pelo ocidente da Andaluzia e avançavam para Sul através de León e Castela a Velha, vindos de Salamanca e de Valladolid. O perigo agora estava na serra do Guadarrama, defesa natural de Madrid, e em Talavera de la Reina a ocidente. Entretanto, se no interior do Norte o golpe tivera êxito, de Madrid até ao Mediterrâneo o povo derrotara os fascistas e apoiava o Governo Republicano. As Astúrias estavam com a República. Na Catalunha, os anarquistas tinham a situação nas mãos. Duas colunas do povo armado avançavam para Aragão.
— E Huelva? — interrompeu António impaciente pela falta de referência.
Havia razões para a pergunta. Precisamente em Huelva estavam os dois camaradas que há semanas tinham sido presos pela Guardia Civil, apanhados ao passar clandestinamente a fronteira pelo Guadiana. Ali em Madrid estavam procurando que a intervenção dos camaradas espanhóis conseguisse que o Governo os libertasse para regressarem a Portugal. Ele próprio teria que tratar da passagem.
— As notícias são más, amigo — respondeu o camarada. — Pelas notícias que nos chegam, Huelva está nas mãos dos fascistas. Dos dois camaradas nada sabemos.
Pessoas que nesses dias chegavam a Madrid, vindas de França e de Itália, não podiam crer no que viam. Caíam em cheio numa grande cidade envolvida, sob a torreira do sol, num tempestuoso turbilhão de choques, manifestações, conflitos armados e atentados.
E contrastes. E surpresas. Aqui, numa rua pacata, esplanadas, gente flanando. Logo ali perto a desfilada dos carros com enormes bandeiras desfraldadas à deslocação do ar. E palavras de ordem. E grupos apressados com destino desconhecido mas certo. E, aqui e além, neste ou naquele momento, tiros sem se saber onde e porquê.
Entre os motivos de surpresa, Guardas de Assalto, fardados e armados, a integrarem manifestações com bandeiras dos partidos e, tal como os populares, reclamando do Governo Republicano a imediata distribuição de armas.
Situação curiosa de facto. Criada para defender a ordem pública, concebida em termos militares como força especializada para nas ruas reprimir o povo, tornou-se nesses dias um corpo relativamente disperso e integrado pelos seus homens na defesa das liberdades, da democracia e da Frente Popular triunfante nas eleições. A conspiração fascista revelava dia a dia dominantes posições no Exército. Não na Guarda de Assalto. Os desacatos, os actos de violência, os atentados, o tiroteio, a desestabilização, eram movidos por grupos fascistas numa dinâmica conducente ao golpe militar em preparação. A ordem pública democrática era defendida directamente pelo povo. Com ele numerosos Guardas de Assalto fazendo frente às provocações, procurando agarrar e prender os provocadores.
Durante alguns dias, os actos de violência dirigiam-se contra as instalações e militantes dos partidos da esquerda, em particular contra os comunistas e os que vendiam nas ruas o Mundo Obrero. Depois passaram também a alvejar Guardas de Assalto. Actos soltos até ao dia em que os fascistas jogaram mais forte e, numa emboscada, abateram a tiro um comandante da Guarda.
O acto foi como que o anúncio de uma certeza: o golpe aproximava-se. Já não se podia evitar.
António, Manuel, Renato participaram juntos no funeral. Um mar de gente na vasta Plaza de Correos. Cordões de mãos dadas ao longo de centenas de metros das grandes avenidas, procurando conter a torrente de homens, mulheres, jovens, que acorriam com bandeiras a gritar consignas, mais parecendo que iam para uma batalha do que para um funeral. Melhor, com a consciência de que aquele funeral era também uma batalha. Entre as palavras, sobressaía uma: «Armas al pueblo!» — imperativa exigência ao Governo. Pelo que se sabia das posições das forças armadas, pela sublevação no Cuartel de la Montaña, tornava-se cada vez mais clara a consciência de que, se não fossem distribuídas armas, se o povo não fosse armado, a República estava perdida.
Na manhã seguinte ao funeral outra notícia correu veloz de boca em boca. Em retaliação pelo assassinato do seu comandante, Guardas de Assalto tinham abatido a tiro Calvo Sotelo, regressado há dias a Espanha vindo de Portugal, onde fora conferenciar com Salazar.
(...)
Afigurava-se irreversível o agravamento da situação. Cada dia se sabia de novas unidades sublevadas. Para o povo madrileno era já inevitável o confronto armado do qual sairia um vencedor e um vencido. A vitória do fascismo seria um banho de sangue e o terror instaurado como sistema do Estado. A democracia seria a liberdade, mas os fascistas, tendo ido até onde já tinham ido, pagariam caro os seus crimes. Uma das duas. Qualquer outra saída seria ilusória.
Por isso o povo nem queria acreditar nas notícias que corriam. Quiroga, presidente do Conselho, apavorado ou colaboracionista, fora demitido e o seu sucessor, Martínez Barrio, pelo que se dizia, estava negociando com os generais sublevados uma solução de compromisso.
— Eso seria entregamos al enemigo para ahogar-nos en sangre — protestou Eulália. — Hay que impedirlo y vamos a impedirlo.
Do Cuartel de la Montaña já se sabia. E as outras unidades militares de Madrid, perguntou Manuel, todas se tinham sublevado?
Não, não todas, informou Eulália. Segundo os camaradas, os Regimentos de Infantaria l e 2 e o de Artilharia do Pacífico estavam com a República. Isso não evitava que o Governo, ao mesmo tempo que se recusava a entregar armas ao povo, continuasse as negociações com os fascistas.
— Es el pueblo el que vá a impedirlo, amigos. Y si el Gobierno no quiere, le obligaremos.
No dia seguinte haveria uma grande manifestação a exigir do Governo combate decidido à rebelião militar e distribuição de armas.
Nunca António e Manuel haviam participado numa manifestação tão grandiosa, nem pensado que pudesse realizar-se e nela pudessem participar.
Dir-se-ia que Madrid convergia para a Puerta del Sol e a Gobernación. Uma multidão — que outra palavra existe para expressá-lo? — deslocava-se com um mar de dísticos e bandeiras. Autocarros apinhados de manifestantes avançavam ao ritmo dos peões.
— No al compromiso! Abajo los traidores!
Outro grito lançado por milhares de vozes ecoava ao longo das ruas.
— Armas! Armas! Armas!
A manifestação transformou-se numa concentração imensa enchendo em pleno o centro da capital.
A vontade, a determinação, a decisão do povo, tinham ali poderosa expressão. Um compromisso significaria a derrota da República, pois, na situação criada, só o povo em armas poderia salvá-la.
Martínez Barrio seria obrigado a desistir do caminho da traição.
— Vamos a impedirlo — dissera Eulália, categórica e certa.
A gigantesca manifestação reforçava a confiança em que seria impedido.
(...)
No Cuartel de la Montaña os fascistas, que se haviam sublevado e entrincheirado, fizeram pela tarde uma surtida com dois jeeps militares. Forçaram a paragem de um autocarro e, sob a ameaça das armas, levaram-no para o quartel no meio da gritaria e dos protestos dos populares que passavam. A um dos que se atravessaram à frente atiraram-lhe os carros para cima, deixando-o estatelado a sangrar. Homens, mulheres e crianças eram agora reféns. A notícia passava de boca em boca.
Sem dúvida, o golpe militar estava para breve. Aprontando-se para a luta, o partido estava todo mobilizado a concentrar-se nas sedes dos bairros.
A um observador desatento ali conduzido, vindo de longe e de olhos vendados subitamente descobertos, a animação da rua, as esplanadas cheias, a gente que circulava, os grupos parados na sombra dos prédios, tudo pareceria habitual num domingo igual a todos os domingos de verão, ali no centro da cidade, não longe da Puerta del Sol.
Igual naquele recanto e naquele momento a um primeiro olhar. Porque logo à observação se revelavam coisas novas e estranhas. Estranho e novo os carros que passavam de quando em quando, cortando o sossego da rua com buzinares e gritaria. Estranho que muitos homens e mulheres ostentassem na cabeça bonés de feitios variados com letras e insígnias. Mais estranho ainda que, ao ouvirem-se, vindos de outras ruas, estalidos lembrando bombas de Santo António, logo os ouvidos se apurassem e os gestos se suspendessem.
Precisamente num momento em que António comentava a tranquilidade do local, soou um desses estalidos e o jovem, lançando uma mirada até ao fundo da rua, viu gente a convergir velozmente para um ponto e estacar em grupo. Logo comentou:
— Se calhar, mais uno que han matado...
(...)
Nas últimas semanas multiplicavam-se os atentados contra militantes e vendedores de jornais da esquerda. Mortos alguns.
Naquela rua, naquele momento, na cidade velha tudo estava mais ou menos tranquilo. Mas Madrid fervia num vulcão.
Sucediam-se manifestações e confrontos. Circulavam carros com velocidades loucas, gritando slogans e abrindo à deslocação do ar enormes bandeiras dos partidos. Aqui e além, estalava o tiroteio e — curioso! — eram raras as fugas e as correrias.
Circulavam boatos de um golpe militar em preparação contra o Governo da República e dizia-se que os fascistas se haviam sublevado no Cuartel de Ia Montaña, agora de portões cerrados, sem contacto com o exterior.
(...)
Pelo que se dizia, os generais, por toda a Espanha, estavam comprometidos no golpe em preparação e controlavam as unidades. O partido mobilizava os militantes e lançava apelos ao povo. Eulália não tinha descanso.
(...)
António foi falando.
As coisas estavam foscas. A reacção não se conformava com a proclamação da República, a vitória da Frente Popular no mês de Fevereiro, a esmagadora maioria republicana e socialista no Parlamento.
— No, no se conforman. Quieren retomar el poder por la violência. Ya lo verás con tus próprios ojos.
(...)
A situação agravou-se rapidamente nos dias seguintes. Aumentaram as provocações e os atentados. António presenciou um deles. Ia pela rua, ouviu dois tiros. Bem perto. Logo no passeio fronteiro um homem cambaleou e caiu. Um magote de gente abeirou--se dele e perdeu-se numa esquina a correr rua fora atrás de quem disparara. António não veio a saber se o apanharam ou não. E no caso de o terem apanhado? Tê-lo-iam levado preso ou, na maré de violência, alguém o teria logo abatido? E se assim tivesse sido? Quem poderia condenar o acto, quando hora a hora os fascistas alvejavam e matavam?
(...)
Ao entardecer, no Paseo de Rosales e na Casa de Campo, o povo madrileno passeava, procurando refrescar-se um pouco do calor escaldante do dia. Passeava em grupos de famílias ou amigos e as horas trágicas, que a cidade vivia, não impediam as moças de enfeitar os cabelos com uma flor ou um laço e as crianças de correr à frente dos pais, rindo e brincando. Entretanto os olhares voltavam-se inquietos para o morro agora sinistro do Cuartel de la Montaña e ao mais ligeiro e suspeito ruído vindo de longe as pessoas paravam a escutar.
Justificava-se a inquietação. Corria que grupos de falangistas armados tinham ido reforçar os oficiais sublevados no Cuartel e que o general Fanjul fora para lá e assumira o comando da sublevação.
Além das informações e boatos que corriam, o povo tinha razões directas para temer o pior. Numa dessas tardes, precisamente no Paseo de Rosales, um carro lançado a grande velocidade ao longo da bela avenida, disparando sem cessar, atropelando as gentes, conseguira escapar-se, deixando um rasto de corpos caídos, gemidos, gritos e sangue.
A crueldade do terrorismo fascista permitia prever o que se passaria no caso de ir por diante o golpe que se anunciava e com evidência se preparava.
O crime no Paseo de Rosales confirmava a razão das inquietações. Assim pensava António. Assim pensava toda a gente.