À pergunta dum deputado, no debate parlamentar sobre o programa de submarinos nucleares britânicos Trident, a recém-empossada primeira-ministra inglesa e defensora da permanência na UE, Theresa May, respondeu com um categórico «Sim» (Guardian, 18.7.16). Não é a primeira vez que o genocídio é defendido abertamente. A 12 de Maio de 1996, no programa 60 Minutes da CBS perguntaram à então ministra dos Negócios Estrangeiros dos EUA, Madeleine Albright, a propósito das sanções que, por interposta ONU, os EUA aplicavam ao Iraque: «Ouvimos dizer que meio milhão de crianças já morreram. São mais crianças mortas do que em Hiroxima. […] Será que vale a pena este preço?». A MNE do Presidente Clinton respondeu: «É uma opção muito difícil, mas consideramos que vale a pena este preço.»
Madeleine Albright discursou na semana passada na Convenção do Partido Democrata que consagrou Hillary Clinton como candidata à Presidência dos EUA. É natural. A «Rainha do Caos» tem responsabilidades directas na destruição de países como a Líbia e a Síria e nas centenas de milhar de mortos resultantes. Na Internet pode ver-se o vídeo em que Clinton, no dia da linchagem de Qadafi, exulta perante uma entrevistadora e, parafraseando Júlio César, proclama «chegámos, vimos e ele morreu», após o que se lança em sonoras gargalhadas. Como dizia John Lennon, na sua canção Working Class Hero: «continuam a dizer-te que ainda há lugares no topo, mas primeiro tens de aprender a sorrir enquanto matas».
A degradação moral dos dirigentes políticos das grandes potências imperialistas, já patente nas mentiras belicistas de Bush, Blair, Barroso, Aznar, Sarkozy, Hollande, Cameron, Obama e tantos outros, não é exclusivo de um sexo, duma cor da pele, duma religião ou duma nacionalidade. A história da afirmação do domínio de classe, e em particular da afirmação do domínio planetário do capitalismo na sua fase imperialista, é um cortejo de crimes. E o sistema premeia os seus crimes. Durão Barroso ganhou o tacho na UE por ter apadrinhado, nas Lajes, a invasão do Iraque em 2003. E ganhou o tacho na Goldman Sachs (cada vez mais o patrão da UE) por ter imposto aos povos da Europa (incluindo o português) a pobreza e a vassalagem à grande finança. Mas a falta de pudor e os crimes, aliados ao empobrecimento de grandes massas para salvar o capital financeiro da crise do seu sistema, estão a estreitar rapidamente a base de apoio social do sistema. Multiplicam-se os sinais da perda de controlo ideológico (veja-se os referendos na UE).
A vaga de ataques terroristas que hoje adubam o terreno da imposição de estados de emergência, de estados policiais ou até de guerras em grande escala, indicia a possibilidade de que estejam em marcha planos subversivos geridos a partir dos próprios Estados imperialistas. Os alegados autores têm frequentemente ligações aos serviços secretos, policiais ou às guerras sujas do imperialismo. É estranho que o gabinete anti-terrorismo da PJ francesa tenha intimado a Câmara de Nice a destruir as suas gravações de video-vigilância da noite dos atentados (Figaro, 21.7.16). Há poucos dias, um tribunal canadiano sentenciou que a polícia daquele país manipulou um casal de tóxico-dependentes «convertidos ao Islão» para cometer actos terroristas «fabricados pela polícia» (Guardian 29.7.16). Quem ache a ideia extravagante pode ver na Internet o documentário da BBC sobre as redes Gladio (1992), documentando profusamente o papel da CIA-NATO e outros serviços secretos nos ataques terroristas que ensanguentaram a Itália e a Bélgica nos décadas que acompanharam a vitória do «neo-liberalismo».
Quem proclama publicamente o seu «direito» a matar centenas de milhar de crianças e de inocentes, não se achará também no «direito» de tentar salvar o seu sistema de poder e riqueza pela via da provocação e do terror?
França e Turquia concentram as tensões e as atenções nestes dias por serem os epicentros do tumulto mediático obrigatoriamente constante e vertiginoso que engorda os impérios globais da comunicação social. Tal acontece pelas piores e mais trágicas razões, se bem que não suceda por acaso nos citados países, nem por razões assim tão díspares quanto poderia supor-se.
Os povos francês e turco são as principais vítimas dos trágicos acontecimentos. Duplas vítimas, deve dizer-se, porque sofrem as contingências dos efeitos conjugados da guerra e do terrorismo e, simultaneamente, as consequências nefastas do comportamento dos seus dirigentes em exercício. Porque a democracia é a outra grande vítima do que está acontecer.
Mesmo assim, associar Hollande e Erdogan no mesmo patamar de actuação lesiva contra os seus concidadãos não será um exagero? Poderá parecer, mas o que conta são os resultados – não é assim que a tecnocracia vigente recomenda?
Odrama dos refugiados na Europa tem sido amplamente mediatizado para desviar a atenção da crise do processo de integração capitalista europeu, retocar a imagem de uma Alemanha profundamente desacreditada pelas brutais imposições à Grécia, justificar apelos a «uma autoridade forte» que reforce ainda mais o carácter supranacional da UE e, sobretudo, esconder as verdadeiras causas e responsáveis pela onda de fugitivos da guerra e da morte. E nos últimos dias, com a entrada em cena dos EUA (que se propõem receber dez mil refugiados sírios) tornou-se evidente que o imperialismo procura instrumentalizar a «crise dos refugiados» para dar um rosto «humanitário» à sua intervenção na Síria e, a coberto do «combate» ao «Estado Islâmico», intensificar as operações militares contra o regime presidido por Bashar al-Assad. A França de Hollande, certamente saudosa dos tempos em que a partilha imperialista dos despojos do Império Otomano lhe atribuiu um mandato colonial sobre a Síria e o Líbano, tomou a dianteira e anunciou bombardeamentos em território sírio. Agora é Obama que, obcecado pelo derrube do governo sírio, vem ameaçar a Federação Russa, que mantém com a Síria uma aliança de muitas décadas, pela sua assistência militar a Damasco.
Ao mesmo tempo que é necessário exigir solução humanitária e política urgente para a dramática situação dos refugiados, não pode permitir-se qualquer distracção quanto à estratégia agressiva do imperialismo. É hoje evidente que o misterioso «Estado Islâmico» foi uma criação do imperialismo norte-americano e da reacção árabe para justificar a política de ingerência, desestabilização e guerra em toda a Região e, em particular, para liquidar a resistência da Síria ao dictat dos EUA e ao seu projecto do «Grande Médio Oriente». Depois de quatro anos de aberta ingerência e brutal agressão das grandes potências da NATO; de sucessivos fracassos e derrotas de «alianças» mercenárias forjadas, armadas e comandadas no exterior; de milhares e milhares de mortes e imensas destruições; de mais de seis milhões de deslocados internos e quatro milhões de refugiados (a esmagadora maioria nos países limítrofes: Turquia, Líbano e Jordânia), a Síria continua a resistir, e isso é inaceitável para o imperialismo. O relançamento da campanha contra este país, procurando responsabilizar o seu governo pela crise dos refugiados e levantando de novo a acusação de utilização de armas químicas e de outros crimes de guerra, não é prenúncio de nada de bom. É necessário desmascarar a tentativa de transformar em bode expiatório a própria vítima.
Éoportuno lembrar que a Síria foi durante muito tempo o mais estável país do Médio Oriente; que esteve sempre na primeira linha de combate ao expansionismo sionista que desde 1976 ocupa ilegalmente os seus Montes Golã; que desde a sua revolução anti-colonial praticou uma política externa anti-imperialista e de cooperação com o campo socialista; com governos dirigidos pelo partido Baas assentes em alianças em que participam comunistas e outros partidos nacionalistas e progressistas; que tem sido refúgio e rectaguarda de palestinianos e outras forças ilegalizadas nos seus países. Num quadro de completa independência e respeito pelas diferenças, o PCP tem mantido relações como o partido Baas no poder e o próprio camarada Álvaro Cunhal visitou este país. Com os seus problemas e contradições a Síria tem desempenhado um papel globalmente progressista no plano árabe e no mundo. É esta realidade que o imperialismo quer a todo o custo abater enquanto na Turquia, com a cumplicidade do «mundo ocidental e cristão» está em marcha uma feroz escalada de repressão do povo curdo e a ditadura saudita bombardeia a capital do Iémen.
O Reino da Arábia Saudita é um dos mais activos patrocinadores dos bandos terroristas ao serviço do imperialismo, e não apenas os de raiz religiosa.
Quando em meados dos anos 80 o Congresso dos EUA proibiu o financiamento da contra-revolução nicaraguense, os sauditas entraram com o dinheiro (NYT, 13.1.87).
Não são tolerados partidos nem sindicatos, nem se faz de conta que existe um Parlamento. Não existe qualquer liberdade de expressão.
Nos meses finais do reinado «reformador» e «amigo das mulheres», duas mulheres foram levadas a um tribunal anti-terrorista por conduzir um automóvel (NYT, 25.12.14) e um cidadão foi condenado a 1000 chicotadas e 10 anos de prisão por criar um blog para discutir questões religiosas (Human Rights Watch, 10.1.15).
Na verdade, o processo judicial do Estado Saudita é uma cópia perfeita do seguido pelo Estado Islâmico: só em Janeiro de 2015 o Reino da Arábia Saudita decapitou 16 pessoas.
Nesta monarquia absoluta onde o Corão é a constituição, não existe lei codificada, pelo que a livre interpretação da lei islâmica aplica-se mediante cortes de mãos e de pés, apedrejamentos e chicotadas.
A Ulema, um grupo de clérigos sunitas radicais, controla todos os aspectos da vida, do sexo à higiene passando pela alimentação e pela leitura, impondo uma estrita segregação sexual que proíbe homens e mulheres de frequentarem os mesmos espaços.
As mulheres sauditas não podem conduzir nem passar pelas portas usadas por homens, estão obrigadas a ter um «guardião» do sexo masculino e não podem estudar, viajar ou casar sem a sua autorização.
Se uma mulher saudita violar a segregação sexual e entrar em contacto com um homem fora do seu círculo familiar, é julgada por adultério e prostituição, crimes castigados com a morte. Na própria semana em que Obama foi render tributo aos reis sauditas, Layla Bassim, uma mulher birmanesa, foi decapitada em público na cidade de Meca.
Na ditadura saudita, não existem quaisquer direitos democráticos ou liberdade de expressão e opositores como Badawi são perseguidos, torturados e executados.
Mas o Estado Islâmico e a Arábia Saudita têm em comum algo mais importante do que as decapitações: os EUA.
Uma ligação que recua ao colapso do Império Otomano, quando os britânicos instalaram ao leme da região uma família de latifundiários sunitas, os Saud. Arábia Saudita significa literalmente a Arábia dos Saud, a família que ainda hoje é proprietária do país e cujos cerca de 7000 príncipes ocupam, com autoridade absoluta, todas as posições do Estado.
Mas Muhammad bin Saud, o fundador do primeiro Estado saudita, não impôs apenas o nome e a descendência ao novo país: também cunhou a religião. Para conquistar o território, bin Saud estabeleceu um pacto com os seguidores do Wahhabismo, a corrente ultra-reaccionária do islamismo sunita que hoje dita a lei na Arábia Saudita e também no Estado Islâmico.
Nascido para servir o imperialismo britânico, cedo os EUA compreenderam a utilidade deste cliente reacionário e avesso a todo o progresso social:
nos anos 70, os sauditas armaram, a mando da CIA, o Taliban e a Al-Qaeda para derrubar o Estado afegão;
na primeira Guerra do Golfo, em 1991, deram estacionamento a meio milhão de tropas americanas;
mais tarde, em 2003, as bases sauditas permitiram 286 000 ataques aéreos contra o Iraque.
Peça central para o avanço do imperialismo no Oriente Médio, a Arábia Saudita compra anualmente aos EUA 30 mil milhões de dólares em armas.
Em contrapartida, vende fundamentalismo religioso, petróleo barato e desestabilização política.
Neste negócio perigoso e de corolários tão volúveis como a Jabhat Al-Nusrah, a Ahrar ash-Sham e o próprio Estado Islâmico, quem perde sempre são os povos.
Aproveitando-se da indignação pelos crimes de Paris, dirigentes políticos mundiais desfilaram de braço dado para TV ver, longe da multidão.
Duas semanas depois, grande parte dos mesmos dirigentes foi em peregrinação à Arábia Saudita, prestar homenagem ao falecido rei Abdullah. Não foram poupados elogios.
Obama valorizou «a nossa amizade genuína e calorosa» (International New York Times, 24.1.15). Para Obama, que encurtou a sua visita à Índia para «homenagear» o rei defunto, «não seria esse o momento para falar de direitos humanos». Afinal, segundo o presidente galardoado com o Nobel da paz, Abdullah foi um «reformador», que malgrado «modesto» nos seus esforços contribuiu para a «estabilidade regional».
Blair disse que era «um modernizador», «amado pelo seu povo e cuja falta será profundamente sentida» (declaração do seu gabinete, 23.1.15).
O International NYT chama-lhe um «reformador saudita» (24.1.15).
David Cameron louvou a sua «dedicação à paz» e a directora-geral do FMI declarou que «era um grande dirigente, que introduziu muitas reformas internas e, de forma muito discreta, era uma grande defensor das mulheres» (Channel 4 News, 23.1.15).
O Presidente de Israel, Rivlin, disse que «as suas sábias políticas contribuíram muito para a nossa região e a estabilidade do Médio Oriente» (Times of Israel, 23.1.15).
Hollande e Fabius deslocaram-se a Riade para prestar tributo ao rei saudita e à «sua visão duma paz justa e duradoira no Médio Oriente» (Libération, 23.1.15) – visão partilhada pela França e bem patente na Síria.
A Arábia Saudita nunca foi alvo das grandes campanhas mediáticas e políticas contra o fundamentalismo islâmico.
Porque a verdadeira questão é outra. A Arábia Saudita e o seu «capitalismo avançado» (International NYT, 24.1.15) estão do mesmo lado da barricada que Obama, Hollande, Cameron e o sionismo.
A hipocrisia sem limites dos chefes imperialistas revela algo importante: o racismo e a islamofobia que de forma cada vez mais aberta é promovida na comunicação social é – tal como o anti-semitismo dos anos 30 – apenas uma arma das classes dirigentes para dividir os trabalhadores e povos e para os arregimentar às suas políticas de guerra, exploração e rapina.
Os elogios a Abdullah mostram que não há «choque de civilizações» quando se trata de arranjar acordos entre o grande capital e garantir a continuidade dos seus chorudos lucros. Poderão existir choques de interesses.
E se algum dia a classe dirigente saudita decidisse seguir outro rumo, então sim ouviríamos falar dos crimes e pecados da sua ditadura e todo o arsenal imperialista – dos mísseis Cruzeiro às agências de notação, dos drones às pseudo-ONG – cairiam sobre a Península.
E se, 'pior' ainda, o povo saudita se erguer para varrer a sua corrupta e serventuária classe dirigente, serão ensurdecedoras as campanhas imperialistas sobre o «perigo duma nova ditadura».