O Bloco é versátil. Como diz o provérbio, quando falta o cão, caça-se com um gato. Com efeito, como diz o líder Louçã (Focus, 18.04.06), o «Bloco é um movimento aberto, que se alarga.»(…) «Nós queremos é incluir.» A grande abertura na óptica do Bloco fez incluir na sua lista para vereador de Lisboa o inefável Sá Fernandes, irmão do outro. E como o «independente» não se sente dependente do BE, eis que surge a desavença intestina. Vem Luís Fazenda, para salvar a honra do convento, e diz que o vereador «se pôs a jeito» para o PS. Logo o irmão Ricardo, partidário do mano Zé, opina no Público contra o «Desnorteamento do Bloco de Esquerda em Lisboa». E Fazenda (DN, 4.08.08) tem de se justificar pela reprimenda, justificando a não complacência com o vereador em roda livre: afinal quem é que está dependente, é o Bloco de Sá Fernandes ou Sá Fernandes do Bloco? Coisas do Zé…
Como o Bloco tem dificuldades nas autarquias, logo o coordenador do BE para esse pelouro, Pedro Soares, também na mesma linha de engorda eleitoral a qualquer preço, destina que «as candidaturas de cidadãos são um modelo desejável em vários locais, até pela participação cívica», etc. e tal (DN- 8.08.08). É só pôr o rótulo «BE» no produto «independente», para aumentar a estatística. É nessa mesma óptica de grande objectiva que os «dissidentes» são recebidos de braços abertos, depois de gastarem todos os cartuchos da dissidência no lugar de proveniência. Este pragmatismo é o timbre do partido do Bloco. Já Luís Fazenda, no trigésimo aniversário do «25 de Abril» (Passado e futuro, 2004), havia consumado dolorosamente o seu revisionismo à moda de Bernstein, («o movimento é tudo, o objectivo (estratégico) não é nada»), quando afirma: «Os marxistas de hoje redescobrem a táctica sem pressões estratégicas artificiais». Louçã, por sua vez, numa esclarecedora entrevista ao Público (21.07.05), quando lhe perguntam se o BE defende a revolução ou se assume como um movimento reformista responde assim: «É um debate de conceitos que o BE não teve.» E, noutro passo da mesma entrevista, diz que o BE não nasceu por uma fusão ideológica, mas «por uma definição de agenda e de programa». Será a agenda de antes da Ordem do Dia, em plenário, no Parlamento, ou em quaisquer «passos perdidos» no areópago, com os media? Como se viu, o programa é feito por medida, consoante a métrica da urna eleitoral.
No século passado, no ido ano de 1989, bicentenário da Revolução Francesa, Louçã deu à estampa a sua Herança Tricolor ( Ed. AJ). Fala aí das «raízes»: «a compreensão de que o lugar da esquerda, contra a banalidade, é na diferença; contra submissão, é na irreverência; contra a força das coisas, é na energia da esperança.» (p. 28). Em 2005 (Sábado, 28.01.05), numa interessante entrevista a Miguel Esteves Cardoso, o arguto escritor constata que Louçã só dissera coisas do senso comum, «como diria um social-democrata dos mais antigos». E o líder, satisfeito, diz: «Fico muito contente por considerares as propostas do Bloco de Esquerda uma questão de senso comum.»
É a agenda e o programa eleitoral da novíssima esquerda reformada e social-civilizada…
Cada deputado no seu galho. As posições europeias do Bloco elevam a sua quota de civilidade e de boas maneiras europeístas. De que serve resistir quando os ventos de Oeste sopram tão fortes? Diz Miguel, parafraseando Marx, que «os resistentes só sabem criticar o mundo, quando o que é preciso é transformá-lo» (DN-20.06.05). Belo efeito, que prova a inteligência da navegação à vela, aproveitando os ventos de feição, sem grande preocupação com a rota. Diz Portas: «Estamos no século XXI, e não posso ser favorável a uma constituição sem processo constituinte.» Uma Europa à medida dos seus desejos, só a votos… Na crónica do DN-(29.10.05) MP encara mesmo «uma perspectiva de ruptura e refundação da Europa.» Ficou-lhe o optimismo histórico de antes, para os grandes voos até Bruxelas, ida e volta: «isto vai, com votos vai!»
Enquanto se elevam as cotações «europeístas», sob controlo apertado do Banco Central Europeu, a lírica de Miguel Portas descobre «o abre-te sésamo» do paraíso europeu no «processo constituinte». E, por isso, é que, a seu ver, «a resistência em um marco nacional, sendo necessária, está condenada» (DN, idem). Diz Miguel Portas que a alternativa «é uma Europa ética e moral» (DN, 6.05.04). Já agora, cristã, há dois mil anos, apesar das invasões de tantos bárbaros.
A facilidade com que se dá a volta a Portugal a pé contra o «desemprego», e a facilidade com que se volta à Europa a votar, eis a expressão acabada do idealismo e da inanidade do «movimento». Dizia Rosa Luxembourg, tão do agrado de alguns bloquistas nas questões «imperiais», a propósito do oportunismo que fazia a oração do «movimento é tudo, o objectivo não é nada»: «Retornar às teorias socialistas anteriores a Marx, não é apenas voltar ao b-a-ba, ao primeiro grande alfabeto do proletariado, é balbuciar o catecismo anacrónico da burguesia.» (Reforma e Revoluçãoa, p. 118, Ed, Estampa).
As posições justas que o BE tem assumido contra as guerras imperialistas e pela paz, e outras, em defesa de minorias, não modificam o diagnóstico nem o prognóstico extraídos nesta radiografia sumária.
In jornal "Avante!" - Edição de 28 de Agosto de 2008
O estilo dominante do discurso bloquista é muito típico, alternando enunciados categóricos e incisivos, com frase vagas, mas sedutoras, até pela sua nebulosa imprecisão. Numa entrevista ao DN (2.03. 08) F. Louçã responde desassombradamente assim: «Com certeza que estamos à esquerda do Partido Comunista», nem mais. E, adiante, sobre o socialismo do Bloco: «Gosto muito de fazer campanha junto das pessoas, de procurar encontrar raízes de radicalidade e de transformação política. Acho que o socialismo é isso mesmo, e é isso que o BE é, como esquerda socialista.» Eis um exemplo paradigmático da forma sofisticada e sofista de nada dizer, usando palavras bonitas.
Depois da frase vazia, mas sonora, eis que vem outra vez a afirmação política da originalidade do BE, pela voz de Louçã na mesma entrevista do DN, que assume forma de promoção da marca, do «produto»: «Nós rejeitamos a ideia de um movimento popular tutelado por um partido.» (…) «Nós entendemos que é preciso constituir uma esquerda transformadora e emancipatória.» Parafraseando, parece óbvio que como o Bloco é um «movimento», não é um «partido», o seu movimento popular não é tutelado, porque é o próprio BE em movimento. Fica muito mal ser «dono» de um movimento, a fotografia para a história sai muito melhor com a atitude liberal de deixar andar o movimento à solta, na espontaneidade criativa de indivíduos cuja consciência é guiada pelo GPS do Bloco… A ideologia baseia-se num discurso fluente e redundante onde vocábulos como «novo», «moderno», «modernizador», «aberto», «plural», «social», «socialista», «popular», «alternativo», «radical», «democrático», «mudança», vão alternando sem grande preocupação com o referente e a realidade.
No livro de F. Louçã, Herança Tricolor (1989), obra prenunciadora do Bloco, radica a mesma preocupação de sempre contra o PCP, ardilosamente montada: «Pelo contrário, o único processo positivo teria que ser a erosão do PCP, criando espaços à esquerda, e esse é ainda e continuará a ser (…) uma questão central para a construção de um Partido Revolucionário(…)» E adverte: «Seria uma utopia reaccionária pensar que é positivo ou que será rápido o inevitável efeito de desgaste que a marginalidade intelectual e comunicacional do PCP e a sua crise política real, junto com as ofensivas ideológicas burguesas introduzirão no movimento operário (p. 184).»
Discurso premonitório! Criado o Bloco de Esquerda, quão verdadeira é a sua promoção nos órgãos de informação, e como é verdadeira a tentativa de marginalização «comunicacional do PCP», em contraste com a diferença de importância e implantação nas classes trabalhadoras. O discurso vago e com laivos intelectuais encanta os menos atentos, que se deixam levar pelo palavreado promovido nos mass media.
Detenhamos a nossa atenção voluntária neste discurso de Ana Drago e Jorge Costa, extraído do capítulo «Partir da Revolução a caminho do futuro», incluído no livro Passado e futuro do 25 de Abril: «Falar de “nova esquerda” é perceber que algo mudou, algo está a mudar, na ideia, no campo e nos actores da emancipação»(…). «No lugar onde se fabrica o antagonismo e o político, fazemos uma viagem de renovação de vontades, de reinvenção dos nomes e experimentação de novos caminhos.» (…) «Esses partidos modernos da era global, tanto mais necessários quando ainda não existem enquanto tal, concebem-se distintos mas próximos dos movimentos sociais e sabem que a soberania de transformação reside nestes, nas estruturas de contrapoder democrático de que se dotem»(…).
O discurso versa sobre a identidade, sobre a autodescrição recitativa e exaustiva do que será, do que é o próprio movimento. Dir-se-ia que se está a inventar verbalmente uma nova formação, mas que não se sabe bem dizer o que é. Então a reiterada referência à «coisa», que foge na malha do texto, numa fraseologia em que abundam os verbos mas faltam os complementos directos, muito movimento para um resultado incerto e indefinido. Um discurso em eco, em espelho.
Os mesmos autores dizem isto: «Sem um movimento popular de largo espectro, que imponha a partir de estruturas democráticas próprias mudanças profundas na natureza do poder político, a chegada da esquerda ao governo só atrasa o atraso.» (…) «Este partido traz consciência» (…) «Sabemos que a “revolução” tem que ser mais que um momento, é um processo de sentido democrático e de capacitação para a autonomia que se vive e se espraia no social, que se enraíza de quem fabrica o conflito e constrói a alternativa.»
A «revolução» com aspas já está também contagiada pela mesma confusão indeterminada, que se vive e se espraia na vagueza do substantivo «social». Afinal o que é que se define e pretende? Que leitura da estrutura da sociedade, que base de classes sociais, que perspectivas em relação à propriedade privada dos grandes meios de produção e do capital financeiro? A sopa eclética, a mistura de palavras não tem um fio condutor, a ideologia é o próprio discurso, num solilóquio dialogado, que torna a linguagem um fim quase desprovido de racionalidade, à boa maneira pós-modernista, a liberdade individual da oração, o discurso liberal, afirmação da individualidade criativa do falante, cada um por si.
E qual o mote da agenda política? Dizem Ana Drago e Jorge Costa, em uníssono: «Todos juntos pela luta toda.»
Faça-se justiça, cabe a Louçã o primado da eloquência bloquista, com grande destaque para a oratória parlamentar e o tempo de antena televisivo. Mas o discurso escrito, particularmente em entrevista, perde o efeito da retórica. Numa entrevista do DN (13.01.07), à pergunta, «O BE não está demasiado dependente de Louçã?», responde assim: «Um partido do futuro como quer ser o BE nunca será um partido “coesionado” ideologicamente, será um partido que encontra diversidade, porque tem de exprimir a sociedade.» Foi assim em 2007. No DN também, em 16.06.06, o mesmo Louçã, à pergunta, «O Bloco não tem grande consistência ideológica?», responde: «Acho que é uma ficção. O Bloco é um partido que tem ideias mais estruturadas na esquerda portuguesa.» E remata logo de seguida que o «partido comunista não tem ideologia». A especialidade do BE é dizer sempre o melhor possível do BE, mesmo que tenha de se contradizer. O antagonismo contra o PCP, marca histórica dos antecedentes genéticos do BE, tem continuidade na acção bloquista, é um dos seus eixos tácticos e estratégicos. No Público (28.02.02), Louçã, «porta-voz» (designação que prefere à de líder) do BE, sublinha as diferenças entre o seu «movimento» e o PCP: «Há uma diferença essencial entre o Bloco e o PCP; o Bloco entende que a visão moderna da política é a que dá força e a capacidade de ouvir opiniões diferentes.» Estaríamos literalmente no mundo dos discursos: o porta-voz, transporta a «voz», vox populi, até à Rua do Ouvidor, e ouve o eco. Antes de passarmos à parte seguinte detenhamo-nos no conceito de «democracia» louçanista, vertido em Pensar a Democracia à esquerda (Editorial Inquérito, 1994), num texto que, por sinal, para dar o tom, se intitula Oito tons democráticos: «O princípio constitutivo da democracia deve ser a horizontalidade e não a verticalidade, a apresentação e não a representação, a política sendo a continuidade do exercício permanente da soberania»(p. 74). Por conseguinte, antes uma apresentação na horizontal de que uma representação na vertical…
(continua)
In jornal "Avante!" - Edição de 28 de Agosto de 2008