A informática como instrumento de manipulação
Como os leitores mais atentos já devem ter reparado (artigo da edição de 31 de Maio "Não há erros informáticos") o info-analfabetismo de alguns dos nossos decisores fascina-me. O mais recente episódio gira em torno da polémica entre o Tribunal de Contas e o Ministério da Saúde sobre os médicos de família.
O coordenador da Unidade de Missão de Cuidados de Saúde Primários (UMCSP), Luís Pisco, afirmou peremptoriamente que «ninguém sabe certamente quantos utentes estão sem médico de família». Ao que parece, segundo ele, não existe um registo nacional de utentes, mas sim 350 bases de dados (tantas quantos os Centros de Saúde). Também não há uma lista nacional de profissionais de saúde.
Menos de 24 horas depois, o secretário de Estado Adjunto da Saúde, Manuel Pizarro, falava NUMA «base de dados de utentes que não permite com absoluto rigor conhecer qual é o número de utentes». E defendeu que o Tribunal de Contas tinha a obrigação de ter reparado que a soma do número de utentes era superior à própria população portuguesa. Refira-se que o número de utentes – 11,3 milhões de utentes – foi fornecido por organismos do Ministério da Saúde.
Sublinhe-se que o cartão de utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi criado em 29 de Julho de 1995 pelo decreto-lei nº 198/95. Aí se atribuiu às cinco Administrações Regionais de Saúde (ARS) existentes a responsabilidade pelas bases de dados. Mais tarde foi decidido centralizar numa única base de dados os dados do cartão de utente, processo acelerado com a criação do cartão do cidadão.
Existe uma estrutura no ministério da Saúde que deveria assegurar toda esta operacionalização: O IGIF – Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde – entretanto substituído pela ACSS – Administração Central do Sistema de Saúde.
Em Março de 2008 podia-se ler no sítio na Internet da ARS de Lisboa e Vale do Tejo que a limpeza de ficheiros dos Centros de Saúde apontava para um total de entre 8,7 a 8,8 milhões de utentes inscritos. Destes 1,3 a 1,4 milhões de residentes no continente não tinham cartão de utente. Calculava-se que 600 mil pessoas, não tinham médico assistente nos Centros de Saúde.
Estes são os factos (ou os dados, para utilizar linguagem de informático). Agora as questões e responda quem souber.
Como é possível, a ser verdade, que no 30º aniversário do SNS ninguém saiba quantos utentes estão sem médico de família? Como se faz a planificação (“não se pode gerir o que não se pode quantificar”)? Na base de quê andaram durante 30 anos a dizer que havia médicos a mais e que havia que restringir o acesso às faculdades de medicina? O que fez (faz) o coordenador da UMCSP, Luís Pisco, para inverter esta situação?
Desta vez os decisores não falaram em «erros informáticos». Já é um avanço! Mas a informática foi utilizada, mais uma vez, como instrumento de manipulação da realidade. As contradições, neste caso, são tantas que quase podemos dizer que não estamos perante simples afirmações de info-analfabetos. O grau de probabilidade de alguém nos estar a mentir é muito elevado…
Especialista em Sistemas de Comunicação e Informação
In jornal "Público" - Edição de 7 de Agosto de 2009