Assinalaram-se, no dia 27 de Março, os 200 anos do nascimento de Alexandre Herculano. O homem sepultado na Sala do Capítulo do Mosteiro dos Jerónimos, ao lado de Camões e Pessoa, foi o fundador da historiografia moderna em Portugal, isto é, dedicou toda uma vida de trabalho intenso a introduzir no nosso país a análise e relato dos factos passados sob um ponto de vista científico.
Nascido a 27 de Março de 1810 no Pátio Gil, a São Bento, em Lisboa, no seio de uma família de mestres pedreiros de posses modestas mas suficientes para lhe proporcionarem uma infância e adolescência sem sobressaltos materiais (o bisavô materno foi um dos construtores do Convento de Mafra e o avô mestre-de-obras do Paço Real, deixando edificações que ainda hoje perduram na cidade de Lisboa), Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo frequentou, desde os 11 anos, o colégio dos padres Oratorianos de São Filipe de Nery, que à época funcionava no Convento das Necessidades.
Alexandre Herculano nasce no ano em que se inicia a terceira invasão francesa do território nacional. A derrota das forças imperiais ocorre nas Linhas de Torres, a 14 de Outubro de 1810, onde sofrem o derradeiro desaire militar. Até Abril de 1814, mais de 100 mil portugueses, ingleses e espanhóis rechaçam os gauleses até ao seu reduto, colocando fim à Guerra Peninsular e consolidando a hegemonia mundial do império britânico, que se manteria até ao início século XX. Nos despojos das várias invasões francesas, a Inglaterra ganha acesso privilegiado aos territórios antes colonizados por Espanha e Portugal na América do Sul.
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo. Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente â secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.» Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de urna classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos. Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho. Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de té-la. É isto o que mais importa - essa alegria. Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá. Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão. Confesso que multas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável. Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã». E. por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.