A decisão russa de responder à provocação da Geórgia e à incapacidade norte-americana de intervir militarmente não é compreensível sem uma informação completa sobre os novos alinhamentos político militares e a profunda crise económica mundial em desenvolvimento.
Atolado em duas guerras, Iraque e Afeganistão, onde, sem honra nem glória, já perdeu a capacidade de iniciativa, em pleno desenvolvimento de uma crise mundial cujos indicadores são mais graves que os da crise de 1929 e que não se sabe quanto durará, mas onde já se vislumbra claramente o fim do dólar como moeda única de reserva do mundo, com o continente latino-americano em crescente contestação ao modelo neo-liberal e à globalização imperialista, o imperialismo ocidental, particularmente o norte-americano, assistiu ao conflito bélico desencadeado pela invasão Geórgia à Ossétia do Sul, com a sua capacidade de intervenção claramente diminuída.
A Rússia, que já dissera não aceitar o seu afastamento da nova partilha internacional do mundo, respondeu, ao que disse, para proteger as suas forças de manutenção da paz e defender os ossetios da agressão.
Saakashvili, eleito em 2004, com 95% dos votos, necessitava de inverter o declínio da sua imagem interna. A sua popularidade caíra em Janeiro último para 53% e continuou a curva descendente, devido à brutalidade com que reprimia as manifestações de opositores e ao silenciamento das críticas por mais leves que fossem.
Mostrando não ter compreendido a nova realidade e a reacção russa à declaração unilateral de independência do Kosovo em Fevereiro passado, Saakashvili lançou-se, com os resultados que já se estão a ver, numa guerra pela recuperação da Ossétia do Sul, esperando a passividade da Rússia, pela cobertura que supunha ter dos EUA e da UE.
Miguel Urbano Rodrigues analisa a crise provocada pela invasão da Ossétia do Sul pelas forças armadas georgianas a partir de uma “gigantesca campanha de desinformação”.
Uma gigantesca campanha de desinformação foi desencadeada com o objectivo de impor à opinião pública mundial uma versão falsa dos acontecimentos do Cáucaso.
O agressor, a Geórgia, é transformado em vítima e a Rússia criminalizada e ameaçada por ter intervindo em defesa da Ossétia do Sul.
Os factos que estão na origem da crise não podem entretanto ser apagados pela deturpação da história.
No dia 7 de Agosto o exército da Geórgia invadiu a Ossétia do Sul e praticou ali, nomeadamente, no bombardeamento de Tskhinvali, a capital da pequena república autónoma, actos de barbárie que provocaram quase 2.000 mortos e o êxodo de dezenas de milhares de pessoas.
O PCP lamenta profundamente a perda de vidas humanas e a destruição provocada pelo conflito militar no Cáucaso. Apela ao fim das hostilidades, elemento essencial para o início de negociações de paz entre a Rússia e a Geórgia que, na opinião do PCP, devem ser desenvolvidas no quadro da ONU à luz dos princípios do direito internacional, do respeito pela soberania e integridade territorial dos Estados e da não ingerência nos assuntos internos.
Os desenvolvimentos militares e diplomáticos dos últimos dias confirmam que este conflito não pode ser analisado unicamente à luz das questões territoriais e de soberania da Ossétia do Sul e da Abcásia. Ele é sobretudo uma expressão concreta das actuais tendências de evolução da situação internacional marcadas por uma nova corrida aos armamentos, pela crescente militarização das relações internacionais e pela profusão de situações de tensão e conflito militar protagonizadas pelos membros da NATO e seus aliados com vista ao domínio geoestratégico de importantes zonas do globo e ao controlo da exploração e transporte de riquezas naturais como o gás e o petróleo.
Há muito que o PCP tem vindo a alertar que o acentuar do carácter ofensivo global da NATO e o seu alargamento até às fronteiras com a Rússia, a crescente confrontação dos EUA e da NATO com a Rússia e China, a militarização da União Europeia, a destruição de tratados fundamentais para o equilibro estratégico mundial como o Tratado ABM com a instalação do sistema de defesa anti-míssil norte-americano no leste europeu, as ameaças constantes a Estados soberanos como o Irão, a manutenção de guerras ilegais e criminosas como no Iraque e Afeganistão, assim como a injecção de armamento na Geórgia por parte dos EUA e de Israel, são explosivos factores de instabilidade que de forma mais do que evidente estão na raíz deste conflito.
Reafirmando a sua posição de princípio contra violações da soberania e integridade territoriais dos Estados e de prevalência da diplomacia na resolução dos conflitos, o PCP recorda simultaneamente quefoi a Geórgia - principal aliado dos EUA na região do Cáucaso, onde estão estacionados importantes contingentes militares norte-americanos, e cujo território, incluindo a Ossétia do Sul, tem um importante valor estratégico do ponto de vista do controlo do oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan - que iniciou as hostilidades militares atacando um território onde se encontravam, sob os auspícios da OSCE e mandato da Comunidade de Estados Independentes, forças de estabilização internacionais compostas por militares russos, ossetas e georgianos. Uma manobra que em caso algum poderia ter sido decidida sem o conhecimento prévio e o acordo dos EUA e que é elucidativa da política do actual governo georgiano de subserviência aos EUA e à NATO, de crescente militarização da região, de conflitualidade com a vizinha Rússia e de instigação à conflitualidade étnica na região.
Este conflito militar e as declarações políticas que o envolvem vem demonstrar - e serve de sério aviso - para os perigos que decorrem da política de sistemático desrespeito do direito internacional e de instrumentalização da ONU por parte das grandes potências imperialistas mundiais. Estão demonstrados na prática os efeitos que os precedentes abertos com a guerra de desmembramento da Jugoslávia e com a instigação e protecção militar à secessão do Kosovo da Sérvia têm na actual situação internacional. Perigos para os quais o PCP chamou a atenção em devido tempo e que vêm confirmar a justeza da exigência do PCP de não reconhecimento pelo Governo português, em qualquer circunstância, da pseudo-independência do Kosovo.
O PCP alerta para os perigos existentes do alargamento deste conflito a toda a região da Eurásia e Médio Oriente e para as consequências que um acentuar do braço de ferro entre NATO e Rússia, ou qualquer provocação militar no Médio Oriente, podem ter para a segurança mundial.
Reclama do governo português uma posição de defesa da paz, da não ingerência e de saída de todas as tropas da NATO da região do Cáucaso como passo essencial para o desanuviamento. Chama ainda a atenção para que este conflito não possa vir a servir de pretexto para acelerar ainda mais a militarização da região do Cáucaso, para a instalação de forças militares dos EUA e da NATO em território georgiano ou para uma política de ingerência política e económica e de controlo geoestratégico da região por parte das principais potências da NATO.
Ainda é demasiado cedo para poder fazer-se uma avaliação exacta dos acontecimentos militares no Cáucaso. Mas desde já, há algumas interrogações que não podem deixar de se colocar. Terão sido os ataques de Tbilissi contra a Ossétia do Sul um acto de loucura isolado de um presidente megalómano incapaz de avaliar a diferença de poderio militar existente entre a Rússia e a Geórgia? Ou estaremos em face de um teste à reacção da Rússia provocado por um exército que desde há anos tem vindo a ser treinado e formado pela doutrina agressiva dos Estados Unidos e da NATO? Ou será ainda a investida militar da Geórgia apenas o prelúdio de uma nova escalada na extensão dos conflitos militares numa região cuja desestabilização constitui um dos objectivos centrais do imperialismo na sua estratégia de cerco à Rússia?
A confirmação pelo próprio presidente Saakashvili de que «não se trata só da Geórgia mas dos princípios e dos valores da América» parece confirmar esta última hipótese como a mais provável. Qualquer que venha a ser o posterior desenrolar da situação e apesar da actual aparente surpresa de Washington e da NATO, a verdade é que os Estados Unidos estão ansiosos por transformar toda a zona fronteiriça da Rússia num braseiro e em particular a região do Cáucaso e do Mar Cáspio cuja riqueza energética é cobiçada pelos monopólios norte-americanos e ingleses do petróleo e do gás natural com destaque para a ExonMobil e a BP. Como já acontecera com as agressões contra a Jugoslávia, o Iraque e o Afeganistão, para os homens de mão dos grandes monopólios internacionais que se sucedem em Washington e noutras capitais da NATO, o problema não é desencadear guerras e agressões mas fabricar os pretextos e as mentiras que facilitem a venda à opinião pública dos seus crimes e massacres como operações «humanitárias» ou «libertadoras».
Como salienta o «Neues Deutschland», referindo-se ao portal israelita «debka.com», Saakashwili contratou 1000 instrutores militares de Israel que têm participado intensivamente na preparação...para a conquista da Ossétia. «Além disso, no final de Julho, também 1000 marines americanos executaram exercícios militares na base de Wasiani a Leste de Tbilissi juntamente com unidades da Geórgia».
Por sua vez o «Jungewelt» relembra que a Ossétia nunca aceitou desligar-se da URSS nem da Rússia e que a situação apresenta muitas semelhanças com a dos sérvios da Bósnia, os quais foram obrigados pela força das armas a separar-se de Belgrado e a integrar-se contra a sua vontade num estado artificial cuja função foi a de facilitar o desmantelamento da Jugoslávia, o controlo pela NATO do flanco sudeste europeu e a extensão da aliança militar agressiva do capital monopolista para o Leste. As declarações do vice-presidente dos EUA Cheney de que «a intervenção militar da Rússia não pode ficar sem consequências» apontam nesta direcção.
O cerco à Rússia e a desestabilização da China são os grandes objectivos estratégicos do imperialismo na hora presente. É neste contexto que se deve situar a agressão militar no Cáucaso e a ânsia de uma guerra contra o Irão. A doutrina oficial geoestratégica dos Estados Unidos e da própria Alemanha dá prioridade a tudo o que possa impedir a constituição de «estados influentes no Leste».
Desde a agressão do nazismo e de Hitler contra a União Soviética que a Rússia não se sentia tão cercada e ameaçada como acontece hoje com os países bálticos, a Polónia e a República Checa, onde devem ser instalados os mecanismo que permitirão desencadear um ataque atómico contra a Rússia e retirar-lhe qualquer possibilidade de defesa. O imperialismo está a atear o fogo. Nunca como hoje a luta pela paz e contra o militarismo foi tão necessária à sobrevivência da humanidade.
In jornal "Avante!" - Edição de 14 de Agosto de 2008