Arrasar o bei de Tunes
(...)
Neste momento, eu vejo daqui o leitor honesto, que vai percorrendo estas linhas, parar, pousar o jornal, o seu charuto, e dizer de si para si, ou às senhoras que costuram ao lado:
—Esta é singular! Caso lamentável e raro! O quê! é isto o que ele tinha escrito? Então, o procedimento do Sr. Pinheiro Chagas não me parece regular. Pois o outro cita as palavras de um jornal inglês, ofensivas para Portugal, condena-as como perversas e descorteses, e o autor da Morgadinha de Valflor atribui-lhas a ele e quer-lhe fazer suportar a responsabilidade delas? Se isto são costumes e maneiras literárias, bem faço eu em odiar os literatos! Porque é que o Sr. Pinheiro Chagas não citou o que o outro escrevera? Caso triste e antipático!...
Riamos, meu caro Chagas, riamos aqui a este canto, abraçados um no outro! Rebolemo-nos! Como se vê que aquele honrado homem, que lê o Atlântico, ignora as amarguras, as necessidades formidáveis do jornalismo... A querer que você me citasse! O ingénuo! Se você me citasse, não podia fazer o artigo: e você tinha absolutamente de fazer o seu artigo!...
Eu conheço a situação: é medonha. Na véspera tem-se dito ao director do jornal, apertando-lhe ferventemente a mão, e com a voz a tremer:
—Palavra de honra, menino. Pela minha vida, que tens lá o artigo, além de amanhã, às nove horas. Eu sou incapaz de te comprometer! Juro-to, pela alma de meus filhos... Boa noite. Lá o tens!
Depois, naturalmente, como você sabe, não se pensa mais no artigo. Mas, cruel destino! no dia aprazado, lá toca a campainha, lá chega, fatal, implacável, irrevogável — o moço da tipografia!
É horroroso. Sobretudo quando ele usa botas que rangem! Fica à espera, passeando no pátio ou no corredor: e aquele lento gemer de solas tristes, cadenciado e acusador, alucina!
E cá no nosso gabinete, que pavorosa luta! As cinco tiras de papel ali estão sobre a mesa, lívidas, irónicas, vazias: e é necessário enchê-las todas, de alto a baixo, com coisas extraídas do nosso interior.
É trágico. A parte da carcaça humana a que se recorre primeiro é naturalmente ao crânio, depósito de ideias, impressões, adjectivos e teorias; aperta-se o crânio nas mãos frementes; sacode-se o crânio como uma velha algibeira: — nada sai do crânio. E as botas ao longe, a ranger!
Maldição! Recorre-se então ao peito, asilo dos afectos, dos sentimentos generosos. Talvez de lá saia um canto, um grito, uma apóstrofe. Arranha-se convulsivamente o peito; bate-se desesperadamente no peito como numa porta fechada: — o peito fica mudo como o crânio. E as botas ao longe a ranger!
Inferno! E então os crentes rezam à Virgem Maria; os ateus invocam a morte, a doce aniquilação da matéria; os mais violentos pensam em atrair o moço da tipografia com palavras doces, cortá-lo aos pedaços com uma navalha de barba, esconder os fragmentos na sarjeta doméstica... E as botas, lá no fundo, ironicamente, rangem!
Ah, caro Chagas, é daí que vêm as cãs precoces. Sabe você o que eu fiz numa destas agonias, sentindo o moço da tipografia a tossir na escada, e não podendo arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito, ou do ventre? Agarrei ferozmente da pena e dei, meio louco, uma tunda desesperada no bei de Tunes...
No bei de Tunes? Sim, meu caro Chagas, nesse venerável chefe de Estado, que eu nunca vira, que nunca me fizera mal algum, e que creio mesmo a esse tempo tinha morrido. Não me importei. Em Tunes há sempre um bei: arrasei-o.
Por isso eu compreendo bem que você não me pudesse citar. Que diabo! se me citasse, adeus belas frases! adeus belo patriotismo! adeus belo artigo! — E você ouvia, no corredor, as solas malditas rangendo. Talvez eu, no seu caso, tivesse feito pior ...
O leitor compreende agora as razões de ordem íntima que impediram o meu amigo e colega Pinheiro Chagas de me citar?
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Exemplos de como redigir um texto, seguindo o conselho de Eça, quando não se pode «arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito, ou do ventre»:
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«Sejam quais forem os agravos em relação a outro País, há regras de convivência internacional que não consentem ofensas gratuitas nem linguagem de caserna nas palavras de um chefe de Estado contra outro Estado. Desta vez o bei de Tunes ultrapassou-se a si mesmo.»
Adaptado de Despautérios verbais
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«Embora inatacável quanto à sua lisura e genuinidade que veio afastar os limites constitucionais à reelegibilidade do bei de Tunes, o referendo constitucional não pode ser aplaudido sob um ponto de vista democrático-republicano.»
Adaptado de Sem limites
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«Há pouca gente com dúvidas, mas também sem certezas. Há na CIA, nas Nações Unidas, gente com dúvidas sobre se as "provas" que os americanos apresentam são mesmo provas a sério, mas são mais dúvidas sobre as "provas" do que sobre o facto do bei de Tunes ter armas de destruição maciça.»
Adaptado de O DELITO DE OPINIÃO: AS "MENTIRAS"
- etc. etc. etc.
E depois de uns bons meses de campanha atacando «esse venerável chefe de Estado», lá para Julho e Agosto pode ser começada outra do género: Escândalo! O bei de Tunes vai à Festa do Avante!
adaptado de um e-mail enviado pelo Jorge